02 November 2007

Torna-te quem tu és

A caretice me comove. Como me comovem o sol e a chuva na rua, e todas as pessoas que nela trabalham. E alternam capas plásticas, guarda-chuvas, galochas, mãos em forma de abano, mãos em forma de sombrero na testa. Comovem os mosquitos que perseguem e lastimam minhas pernas. Estas, como todo o corpo, resistem. No pasarán. Os olhos ignoram as picadas que formam pequeninos pontos de sangue coagulado. As mãos, quando não são abanos ou sombreros, tratam de coçá-las, às vezes discretamente, às vezes como quem tira diamente da pedra. Me comovem todos os reflexos de olheiras, de despenteios, de desarranjos visuais. E o corpo a se arrastar de bairro a bairro, de enchete a queimada, de linguajar callejero a lições de francês. Me comovem todas as contradições e ironias da rotina. A comoção anestesia e vicia, mas não entorpece. Por entre os fiapos da lucidez, lá vejo o mundo como é. Trágico e cômico como sempre foi. E eu, de comicidade insultante, de tempestades risíveis... Eu me comovo por ter escolhido estar aqui.