24 April 2008

Depois do P.S.

Não dá para ter uma teoria totalizante. Só conseguimos embarcar no Trem Regional (que alguns chamam "da Morte") porque uma senhorinha de La Paz nos ajudou.

Além disso, ainda existe um regime comunal nos pueblos do Altiplano, com trocas diretas e trabalho comunitário.

A solidariedade e a mesquinhez não são regras. Mas a solidariedade deveria ser.

O Post-Scriptum sobre a Bolívia tinha caráter mais de observação do que de teoria. Experiências isoladas, de solidariedade ou de mesquinhez, não dão conta de explicar a sociedade boliviana (nem qualquer outra). Mas algumas pessoas bem-intencionadas viajam para lugares pobres em busca do primitivo, do ser humano pré-capitalista, do bom selvagem, do "os pobres também são felizes", da pureza perdida das grandes metrópoles. E isso pode gerar um conforto traiçoeiro: ao fantasiarmos o Outro, nos distanciamos da realidade que buscávamos compreender, nos alienamos cheios de boas intenções.

Muitos tentam se agarrar à América Latina por fiapos de Macondo, com olhos realistas-mágicos. Isso pode ser solução ou problema. Pode gerar uma unidade necessária para o imaginário comum. Ou retóricas vazias e anacrônicas.

21 April 2008

Post-Scriptum sobre a Bolívia

A Bolívia me impressionou pelo seu potencial revolucionário (a sensação latente que a insurgência está por um fio de se realizar) e, paradoxalmente, pela crônica falta de solidariedade do povo. Não era raro perceber situações em que um boliviano tentava passar a perna nos demais, como por exemplo aumentando drasticamente o preço combinado da passagem quando o veículo estava na metade de sua rota. Quando se tratava de estrangeiros, a situação apenas piorava. Todo banheiro público era pago: mesmo que existisse uma placa dizendo "Gratuito", haveria de existir também duas ou três criancinhas cobrando o uso de latrinas pavorosas. Num pueblo, uma argentina pediu um copo de água da torneira para ferver e usar no seu chimarrão. A dona do restaurante quis cobrá-la um ou dois bolivianos. A argentina protestou, alegando que em seu país a água era dada como cortesia. O que surpreende é que, sendo um boliviano morto de sede, a cobrança se daria da mesma forma. Um ônibus cheio de crianças e velhos quebrou, pela quinta vez, no meio de uma estrada lamacenta. Um caminhão parou em seguida e os passageiros trataram de subir na caçamba precária. O caminhoneiro cobrou três bolivianos por pessoa, incluindo crianças famintas e sujas. A brutalização dos seres humanos na Bolívia é um processo de vários séculos. A pergunta que me resta é: alguma Revolução se sustenta sem qualquer noção de solidariedade? Eles lutam entre si pela lavagem dos porcos, usando muitas vezes artifícios dos mais baixos. Mudar apenas a ordem econômica resolve uma herança cultural tão famigerada, medonha, triste? Motoristas de táxi e pessoas comuns costumavam carregar debaixo do braço para todo canto rolos de papel higiênico (prova de que ninguém estaria disposto a oferecer artigo algum que não fosse pago). Argentinos, chilenos, uruguaios e brasileiros chocavam-se com tamanhas demonstrações de mesquinhez, como se seus próprios países não fossem também mesquinhos: o fato assombroso é que a experiência boliviana faz o Brasil, a Argentina e o Chile parecerem generosos. E nada soa mais estranho do que isso.

Essas são questões pendentes para mim.