30 August 2008

Trechos, torres e lugares no mundo

Dia chuvoso de leituras (anti-) psicanalíticas e (anti-) existencialistas, que me trazem a certeza da superação de determinadas indefinições (em outras palavras, a certeza do "a que vim fazer neste mundo"). Rômulo conhece os prenúncios da pergunta recorrente - "Posso ler um trecho para você?" - e parece se arrumar para ouvi-lo. É certo que me acusa de distraída, por perder o fio da atenção quando ele me oferece "um trecho". É certo também que as idéias entram em mim de maneira menos organizada do que nele. De qualquer forma, enquanto as idéias voam desvariadas por todos os lados, olhamos para o mesmo céu, nos reconhecemos nele, nos reconhecemos em nós dois.

Cada vez mais percebo ser difícil o debate público (e acho um momento heróico dos homens públicos sinceros e complexos). No meu caso, debate público se refere a uma arena bem restrita, quase privada a amigos, conhecidos e semi-desconhecidos. O obstáculo está no começo de todas as discussões, que jamais é realmente um "começo", pois as pessoas já trazem em si uma bagagem de pressupostos e concepções (refletidos, irrefletidos, folclóricos, de senso comum etc). A sensação Torre de Babel me persegue.

Acho que a explicação do problema pode ser a seguinte: Um saber é realmente adquirido apenas quando o processo de aprendizado se apaga da memória. O encadeamento de regras, argumentos e pressupostos - tão necessário e claro numa fase - passa a ser internalizado no fim do ciclo: o indivíduo simplesmente "sabe". Como andar de bicicleta, falar uma língua ou ter uma visão de mundo.

Uma simples idéia, portanto, significa um longo processo de escolhas conscientes e inconscientes. Nunca pode ser resumida a uma tomada de posição imediata num debate. Para que um debatedor pudesse realmente convencer o outro, teria que voltar muito atrás no seu processo de aprendizado (já internalizado) e mostrar ao concorrente as suas razões mais profundas.

Algumas poucas pessoas, entretanto, nos surpreendem por terem uma consciência nata dessas nossas razões mais profundas. São com as quais nos comunicamos sem palavras. Mesmo que nem sempre concordem com a superfície dos nossos argumentos imediatos. Antes de tudo, são um contraponto à Torre de Babel na qual nos metemos ao nascer. São, talvez, nosso verdadeiro lugar no mundo.

05 August 2008

Porque Marx não serve para nada

Rômulo chegou esbaforido de uma incursão na graduação. A disciplina era História do Pensamento Econômico II, cuja ementa prevê a leitura do livro I de O Capital. Difícil ter estômago para graduação, sobretudo porque 99% das pessoas que nela estão foram levadas compulsoriamente até lá, com a missão básica de conseguir um diploma qualquer que lhes garanta um emprego burocrático e uma dignidade mínima na sociedade contemporânea. Universidade é um nome que perdeu o sentido: longe de parecer um universo - infinito, complexo e revelador -, mais parece, tantas vezes, a sala de espera do dentista, em que criaturas distraídas folheiam revistas sem menor critério. Quantas pessoas conseguiram se formar, em instituições públicas ou privadas, sem terem lido sequer um livro inteiro?

Mas voltando ao caso de hoje. Rômulo me conta que o professor era um homem de 60 e poucos anos, sisudo mas afável. Ele pergunta se alguém na turma já havia tido contato com a obra de Marx. Um garoto se adianta: "Odeio Marx. Ele não serve para nada". O professor argumenta: "Mas você já leu alguma coisa do autor?". Não havia lido. A Economia é povoada pelo que gostamos de chamar de "ogros matemáticos". É o tipo de cara que exercita bastante os músculos e promete que fará seu primeiro milhão aos 20 e poucos. Acredita ter sido tocado pelo dom da inteligência, pois consegue resolver equações matemáticas e sofre de pró-atividade mercadológica.

O professor parece estar psicologicamente preparado para lidar com essa gente "do futuro". Rômulo faz uma referência ao nome do filme dos irmãos Cohen: "No country for old men". Filme ruim, título ilustrativo. O veterano continua: "Por muitos anos, tentei explicar por que Marx não serve para nada. Agora já tenho uma resposta".

Numa tribo sem História ou, melhor seria dizer, numa sociedade em que as organizações e relações sociais se mantêm inalteradas ao longo dos anos, tanto faz observá-la hoje ou dois séculos atrás. Ela se converva igual, pois todos indivíduos, em todas as gerações, se inserem naturalmente no grupo. Não existem margens que se multiplicam. Nessa sociedade, Marx é completamente inútil.

Muitos estão convencidos que vivemos numa sociedade sem História, que desigualdades e opressões de várias espécies não têm origem no tempo histórico. Tantos jovens assimilaram que o mundo tal como vemos hoje sempre existiu e sempre existirá, equiparando-o a uma tribo de equilíbrio perfeito, em que mesmo as características ruins têm sua razão de ser - ou, como se diz hoje, a existência miserável de 2/3 de pessoas no planeta é a condição básica para que a última parte viva bem.

Nesse "equilíbrio perfeito", cada um se vê "livre" (no sentido mais escroto da palavra) para cultivar seu intimismo à sombra do poder, para fazer um milhão de reais, para consentir um projeto que mutila em massa carne e alma humanas... Afinal, a História não existe mesmo e as pessoas são responsáveis apenas pelo curto espaço de tempo em que respiram e consomem.


(Para Rômulo, como tudo que escrevo e penso).