25 December 2006

A última cena

MANHÃ, 6:20h

Já não há amor, nem dor, nem nada. O sinal de trânsito pisca o verde e indica apenas que a vida segue. Algumas pessoas, curiosas, formam grupos em lados opostos da rua. As calçadas separam corpos que, paralelos no infinito, contrariam as certezas matemáticas e jamais se encontrarão em um ponto invisível aos olhos presentes. À direita, um pai de família exala o cheiro da cachaça barata e da morte ordinária. Entre o boteco e a loja de fast-food, um funcionário com uniforme e olheiras varre a calçada, sem varrê-lo dali. Escorrega a vassoura por entre um e outro que cercam o homem estirado no chão. Não notou se era só mais um dos tipos rotos, que soluçam e tropeçam, num transe maldito, até caírem desmaiados. O rosto pressionado contra o concreto sujo, deformado pela posição, revelava algo de inexpressivo, como a feição dos velhos que caem no sono depois de três minutos de leitura. Num sono tão banal quanto precioso. À direita, do outro lado da rua, de bruços, a silhueta rechonchuda de uma mulher nos seus 30 anos forma na calçada um desenho igual ao do sujeito morto. Vistos de cima, dançam imóveis uma marcha fúnebre na manhã nascente.

MANHÃ, 6:04h

Quem estava por perto não deu conta das intenções da mendiga, antiga no bairro tanto quanto aquelas esquinas. Gargalhando de forma frouxa e descontrolada, se aproximou, pé ante pé, da gordinha que acabara de atravessar a rua com livros debaixo do braço. Em segundos, as mãozinhas inchadas tentavam tatear no ar o que havia agarrado em seu pescoço. O entregador na bicicleta riu. Todos riram. Mas os livros caíram. E a mendiga continuava gargalhando e puxando a fio de náilon para trás. A vítima engasgou mais rápido do que alguém pudesse avaliar o fim daquele episódio. As pessoas ficaram com os sorrisos suspensos e congelados num momento anterior de graça que ainda não passara. Até o chaveiro do quiosque próximo correr na direção da mulher que tombava na calçada. A mendiga coçava freneticamente a cabeça, como aqueles macaquinhos que catam piolhos na televisão. E corria em círculos ao redor da morta, do chaveiro e, agora, de uns passantes que pararam para ver o que acontecia. Logo, uma senhora com bolsa de feira perguntaria da vela, aquela que ilumina o caminho do defunto. Mas já não se usam mais essas coisas.

MANHÃ, 5:55h

Às cinco para as seis da manhã, na troca de turno dos funcionários do fast-food, o segurança à paisana subiu ao segundo andar. Tinha uma barriga saliente e as chaves, penduradas no cinto, faziam barulho quando ele avançava pelos degraus da escada. Para ela, servia como despertador. Hora de ir. Em segundos, a figura monstruosa, mas gentil, lhe diria as palavras de sempre, mostraria o relógio e convenceria-a de ir para casa. Adiantou-se, recolheu uns papéis, enfiou-os dentro dos livros e foi ao banheiro. O salão estava vazio quando ele entrou. Viu os livros na mesinha de plástico colorido. Por um instinto qualquer, virou os olhos bruscamente para as janelas. Fechadas. Ela surgiu com andar desengonçado e, ainda de longe, foi lhe falando “Já sei, já sei. Estou indo”. Pegou suas coisas, mas esqueceu o guarda-chuva verde musgo. Ele quase foi atrás para devolvê-lo, mas já não chovia e, no mais, ela voltaria na noite seguinte.

NOITE, 00:00h

Chegavam juntos todos os dias, por volta de meia-noite, quando a lanchonete ainda estava cheia. Ela se sentava perto da parede, num lugar central, de onde podia ver todos que entravam e saíam, embora raramente desgrudasse os olhos do que lia ou escrevia. Os freqüentadores também se repetiam, mesmo que não fossem os mesmos. Havia sempre um grupo desocupado jogando cartas de madrugada. Em média, dois ou três casais se amassando no fundo do salão. Por volta das três, as bonequinhas de luxo, inábeis para as imoralidades da noite, subiam as escadas quase rastejando. Vômito para todos os lados. Algumas pessoas até compravam comida e, ao chegarem no segundo piso, ficavam deslocadas com as bandejas na mão, procurando um lugar para sentar, apesar de tanta disponibilidade de cadeiras. Ela se sentia parte da fauna mista dos fast-foods da madrugada, próxima de uma espécie bacana de inspetores de colégios, daqueles que não delatam, que fingem não verem nada. Volta e meia, alguém perguntava que raio de música cafona e sussurrante era aquela dos alto-falantes. Um freqüentador mais assíduo respondia: “É ela ali que pede. Não vê que fica movendo os lábios em silêncio?”
Ninguém sabia o que tanto estudava, o que fazia durante o dia para passar a noite toda acordada. Às cinco para meia-noite, saía do prédio onde morava, atravessava a rua e ia à lanchonete. Nem sempre cruzava com o pai. Mas, naquela noite, chegaram a se ver por um instante. “Já vai?”. E ela já havia ido. Quando ouviu o barulho da porta batendo, o velho de bigode sentiu, de uma vez só, todo o cansaço guardado.

NOITE, 23:40h

Minutos antes, travava uma discussão no saguão do prédio com um sujeito que deveria ter a idade de sua filha. Sentia-se cansado. Um cara cheio de bons modos tinha aparecido na portaria perguntando, em tom de voz sereno, sobre o número de um apartamento. Ele abaixou o volume do radinho de pilhas e fez esforço para escutá-lo. “O senhor sabe me informar o número do apartamento da Marina, uma moreninha de um metro e meio mais ou menos? O pai dela é juiz, o senhor deve conhecer”. Ele explicou que Marina morava no Bloco A do condomínio, a entrada era pela outra rua. Cinco minutos mais tarde, o rapaz voltou. “O senhor sabe me informar o número do apartamento da Marina, uma moreninha de um metro e meio mais ou menos? O pai dela é juiz, o senhor deve conhecer”. As pernas paradas na mesma posição, o tom de voz inconfundível, o olhar meio distante mais uma vez e aquelas boas maneiras de cinco minutos atrás. “Meu camarada, você deve estar de brincadeira! Eu não te respondi isso agora há pouco?”. O sujeito sacudiu a cabeça, voltando a si, fitou o porteiro e ficou vermelho de tanto constrangimento. Desdobrou-se em desculpas e explicações. O porteiro deu de ombros e ajeitou o volume do radinho. “Olha, meu amigo, deixa para lá, meu tempo aqui está acabando e minha filha me espera”.

NOITE, 23:55h
Pouco antes do habitual, ele deixou a cabine dos porteiros. Ainda no andar térreo, abriu a porta da plaqueta “zelador” e viu a luz do banheiro acesa. Em pé na pequena sala, esperava o momento perfeito de conversar com a filha. Mas ouviu a porta rangendo, virou metade do corpo e um rosto de mulher, do lado de fora do apartamento, sumia em câmera lenta. Largou-se no sofá por frações de segundos, pôs-se novamente de pé e saiu decidido a parar no primeiro boteco. Na esquina, ao lado do seu edifício, bebeu muito e rápido e mais. Até perder os sentidos, a memória, a dor e um pouco do amor. Não percebeu sequer a ventania e o frio. Quando os primeiros raios solares aqueceram a manhã, dois garçons começaram a virar baldes de água no chão do bar. Um ritual de lava-pés dos miseráveis que se repetia em todo amanhecer. Como de costume, ele saiu com pés e tornozelos molhados, talvez limpo de seus pecados, anestesiado de seus pavores. Errou a direção e atravessou a rua. Mais uma vez, por um instante, cruzou com a filha, que não reconheceu. Havia à sua frente apenas uma imagem borrada de pedestres, mas nenhum som vinha deles. Ninguém que lhe mostrasse o caminho de volta ao lar que talvez não fosse seu. Reconhecer. Conhecer de novo. Quem o conhecia para querer vê-lo pela segunda vez? Desabou no chão e morreu, no exato momento em que fenecia também um outro fiapo de vida pouca – a única tristemente ligada à sua.

1 comment:

Diogo B.F. said...

seus textos sao fortes e bons, leio todos. Comecei a entender a pouquissimo tempo o poder das emocoes. O mundo está parecendo grande mas é pequeno dentro de cada um.
Pena nao nos vermos.