Ela toca gaita, os seus cabelos e os ombros do motorista de ônibus:
“Ei, não ouviu o sinal? Puxei a cordinha, era ponto. Não vai parar?”
Desceu do ônibus com uma caixa de papelão cinza debaixo do braço. Dentro dela, a parte afrodisíaca do almoço improvisado: vinte ovos de codorna.
“Meu senhor, como me explica esses ovos de periquito disfarçados de codorna? Eu sei bem o que é um ovo de codorna: tem manchas escuras e é maior. Não comerei embrião de periquito. Está decidido”.
Saiu da quitanda com um carregamento de frutas. Ao chegar em casa, devolveu ao ninho os quatro ovos de seu casal preferido: Jean e Simone.
Ferveu na chaleira os ovos de codorna. Ouviu o apito justamente no momento em que Vicente raspava a sola do sapato no tapetinho da porta.
Abriu a porta com as mãos sujas de manga. Esfregou o melado no rosto do amante, antes de beijá-lo na boca. Ele estava surpreso, e sujo, mas riu e entrou.
“Rose Marie! Volte aqui!”
“Vá sentando-se na mesa. Tenho surpresa”.
Arrumava em câmera lenta uma salada com ovos, folhas e frutas, quando ele marchou até a cozinha.
“O que é isso? Tem sangue!” (mostrando um papel)
“Não é meu. O sangue, digo”.
“Ah, sim, ótimo. E me dou por satisfeito? Você feriu... Matou alguém?”
Ela gargalhou ruidosamente.
“É um bilhete suicida. Roubei de um morto”.
Vicente passou de uma pergunta à outra, e logo à seguinte, numa sucessão irritante. Rose Marie controlou os nervos. Contou-lhe então a história que passaria batida se não fosse aquele pequeno escândalo conjugal.
Estava ela voltando da quitanda a pé. Sentia-se especialmente feliz pelo golpe inocente que aplicara no quitandeiro. Era domingo, as ruas estavam desertas, mas iluminadas pelo sol da manhã. Uma mulher gorda pôs fim ao momento irrompendo na calçada feito louca. Gritava qualquer coisa que não se podia entender e segurava a testa com as duas mãos.
“O que passa, senhora?”
“Um homem roxo! Roxo! No banheiro!”
Rose Marie olhou a placa do Hotel Lips (lábios em inglês), cruzou o saguão escuro e subiu as escadas de madeira. Entrou na porta escancarada e viu o tal homem roxo. Tinha enroscado no pescoço um cinto que o prendia feito cachorro à maçaneta da porta do banheiro. Prendeu o pescoço e derrapou de propósito no piso molhado. Fim.
Ela fez questão de deixar suas digitais por toda parte. Mexeu no roupão marrom desbotado, nos lençóis, na pequena maleta ao lado da cama, nas cortinas. E achou rapidamente o que queria. “Não agüento mais isso”, as quatro únicas palavras do bilhete suicida.
Guardou o papel em sua bolsa de feira e pôs-se a pensar em outra solução. Acabou por escrever “Apenas decidi a minha morte. Decida você também a sua”.
“Senhora, fique calma, ele está bem”, disse à gorda.
“Ai, graças a Deus! Pensei que estava morto!”
“Está. Mas parece ótimo, além de tudo”.
Rose Marie fez gesto para Vicente de que isso era tudo.
“Vicente, meu bem, agora toma esse bilhetinho e lê o que está escrito. Souvenir do dia que não te agüentei mais. Você pergunta muito..."
19 April 2007
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1 comment:
Belíssimo texto, Carlinha! Uma pérola.
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