No dia em que conheci Gervásio, o caminhoneiro aposentado de 12 dedos, duas pessoas que não se conhecem me disseram, em contextos diferentes, a mesma frase: "A gente já nasce morrendo". Sexta-feira de acontecimentos bizarros. Pensei nisso no ponto de ônibus da Praça da Cruz Vermelha (que o Alvinho um dia definiu como "linda, pois é redonda"). Olhei o prédio do Inca, os muitos buracos do asfalto e a praça (um velhinho de mais de 80 anos foi preso uma vez ali, onde vendia cocaína. Ele era manco e carregava as drogas numa sacola). O ponto de ônibus fica abrigado debaixo de uma marquise improvisada com pedaços de madeira. Está prestes a cair há pelo menos um ano. Muitas crianças de chapéu esperam seu ônibus ali. Elas têm câncer.
* * * * * * * * * *
Faltam quatro dias para o fim do ano e não sinto que tenha tanto a dizer. Charles Chaplin, que morreu no Natal de 1977, fazia cinema-mudo porque as palavras pareciam "fúteis, imprecisas". Gostaria também de fazer jornalismo-mudo, dedicatórias-mudas em livros, declarações-mudas de amor, desejos-mudos de feliz ano novo.
Sem mais.
27 December 2007
22 December 2007
21 December 2007
Gervásio
Acordo poucas horas depois de dormir. A semana foi cruel. Melhor, o ano. Na noite anterior, havia recebido uma ligação urgente da redação e uma ordem ingrata: que chegasse às 6h30 no dia seguinte para tomar café-da-manhã com o governador num bandejão popular na Central do Brasil. Chovia. Tinha sono. Todas as roupas me pareciam armaduras de tão pesadas e incômodas. Maldisse o momento em que escolhi a profissão. Falei disso na breve caminhada que fiz com Rômulo, de sua casa ao ponto-de-ônibus. A partir dali, ficaríamos mais 10 dias sem nos ver. Ele estaria em Fortaleza. Quando vi sua imagem desaparecendo, percebi que burrice era tocar nesse assunto naquele momento. Estava com saudade.
Chego na redação. Vazia. Espero algum tempo até o fotógrafo aparecer. Desembarcamos do carro na Central: tudo em volta é abandono e miséria. Um homem que passa por nós fala sozinho: "Jesus Cristo nunca passou por aqui". Até os cachorros são mais deprimentes, arrastam-se e resmungam. Velhinhos raquíticos e doentes se acomodam por horas em cadeiras plásticas à espera do almoço. Chega o governador, secretários, deputados e a claque. O evento todo dura menos de 20 minutos. Todos se recusam a comer o lanche servido dentro de sacos plásticos. E saem porta afora.
Eu deveria ter entrado no trem que o governador viajaria até São Cristóvão. Perdi a saída quando me distraí com uns velhinhos que denunciavam que ele não havia tocado na comida. Tentaram lhe entregar a trouxinha, alertaram funcionários. Por fim, repartiram entre si mais uma ração alimentar. Em segundos, havia me integrado ao grupo. Já sabia que uma senhora de 78 anos, moradora de Irajá, acordava às 4h todos os dias, há sete anos, para almoçar por R$ 1 no bandejão. Com a freqüência, fez os amigos que não tinha na vida (o marido morreu há 18 anos e a deixou sem filhos). Havia até uma espécie de líder comunitário do restaurante popular, que pleiteava para si o dever de brigar por causas comuns, como a manutenção do bebedouro.
Um negro alto de 74 anos, com aparência de 50, filho de angolanos, nascido com 12 dedos (assim como os filhos), todos os dentes originais, viúvo, morador da Cidade de Deus, caminhoneiro aposentado, compositor de sambas, rei dos malandros. Gervásio é uma fábrica de frases de impacto.
- Meu antigo celular está com a desdentada.
- Que desdentada?
- Se não colocar um vulgo na nega, ela não atende. Branquinha assim como você fica toda-toda de ser chamada de crioula. Nem que seja por um verão.
Se tem algo que não aprecia na vida é mulher com pé rachado e cheiro de arroz queimado. Gervásio melhorou meu dia. E até me fez escrever de novo.
[Por curto tempo. Agora volto à matéria do governador.]
Chego na redação. Vazia. Espero algum tempo até o fotógrafo aparecer. Desembarcamos do carro na Central: tudo em volta é abandono e miséria. Um homem que passa por nós fala sozinho: "Jesus Cristo nunca passou por aqui". Até os cachorros são mais deprimentes, arrastam-se e resmungam. Velhinhos raquíticos e doentes se acomodam por horas em cadeiras plásticas à espera do almoço. Chega o governador, secretários, deputados e a claque. O evento todo dura menos de 20 minutos. Todos se recusam a comer o lanche servido dentro de sacos plásticos. E saem porta afora.
Eu deveria ter entrado no trem que o governador viajaria até São Cristóvão. Perdi a saída quando me distraí com uns velhinhos que denunciavam que ele não havia tocado na comida. Tentaram lhe entregar a trouxinha, alertaram funcionários. Por fim, repartiram entre si mais uma ração alimentar. Em segundos, havia me integrado ao grupo. Já sabia que uma senhora de 78 anos, moradora de Irajá, acordava às 4h todos os dias, há sete anos, para almoçar por R$ 1 no bandejão. Com a freqüência, fez os amigos que não tinha na vida (o marido morreu há 18 anos e a deixou sem filhos). Havia até uma espécie de líder comunitário do restaurante popular, que pleiteava para si o dever de brigar por causas comuns, como a manutenção do bebedouro.
Um negro alto de 74 anos, com aparência de 50, filho de angolanos, nascido com 12 dedos (assim como os filhos), todos os dentes originais, viúvo, morador da Cidade de Deus, caminhoneiro aposentado, compositor de sambas, rei dos malandros. Gervásio é uma fábrica de frases de impacto.
- Meu antigo celular está com a desdentada.
- Que desdentada?
- Se não colocar um vulgo na nega, ela não atende. Branquinha assim como você fica toda-toda de ser chamada de crioula. Nem que seja por um verão.
Se tem algo que não aprecia na vida é mulher com pé rachado e cheiro de arroz queimado. Gervásio melhorou meu dia. E até me fez escrever de novo.
[Por curto tempo. Agora volto à matéria do governador.]
17 December 2007
Caravana
10 December 2007
Melhor da semana
Não-poema pessoal e intransferível
1.
Nem todo mundo
dá num poema
meu
ou de qualquer outra pessoa.
2.
Ele - o poema -
salta, corre, dança
tentando te ser,
mas não alcança:
me foge.
Ele - não este -
pensa, fabula, conspira
e, tentando te ser,
irrompe em fala.
Mas fala pouco,
fala sem ênfase:
e não te serve.
3.
Aqui, a busca pára
e o poema não aparece.
Entrego: não tenho a técnica para fazê-lo.
Mas sei bem
que ele existe, mesmo
sem ser encontrado,
anti-estético, em mim.
4.
Então, este - o não-poema - se faz
no inconcluso.
Se faz pouco,
e tampouco te diz ou te digniza,
mas, teu,
é o que pude
com tempo estreito
e largo carinho,
Lia.
P.S. O poeta do meu tempo: Rodolfo Gomes.
Visitem em http://e-musicafalada.blogspot.com/
1.
Nem todo mundo
dá num poema
meu
ou de qualquer outra pessoa.
2.
Ele - o poema -
salta, corre, dança
tentando te ser,
mas não alcança:
me foge.
Ele - não este -
pensa, fabula, conspira
e, tentando te ser,
irrompe em fala.
Mas fala pouco,
fala sem ênfase:
e não te serve.
3.
Aqui, a busca pára
e o poema não aparece.
Entrego: não tenho a técnica para fazê-lo.
Mas sei bem
que ele existe, mesmo
sem ser encontrado,
anti-estético, em mim.
4.
Então, este - o não-poema - se faz
no inconcluso.
Se faz pouco,
e tampouco te diz ou te digniza,
mas, teu,
é o que pude
com tempo estreito
e largo carinho,
Lia.
P.S. O poeta do meu tempo: Rodolfo Gomes.
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