21 December 2007

Gervásio

Acordo poucas horas depois de dormir. A semana foi cruel. Melhor, o ano. Na noite anterior, havia recebido uma ligação urgente da redação e uma ordem ingrata: que chegasse às 6h30 no dia seguinte para tomar café-da-manhã com o governador num bandejão popular na Central do Brasil. Chovia. Tinha sono. Todas as roupas me pareciam armaduras de tão pesadas e incômodas. Maldisse o momento em que escolhi a profissão. Falei disso na breve caminhada que fiz com Rômulo, de sua casa ao ponto-de-ônibus. A partir dali, ficaríamos mais 10 dias sem nos ver. Ele estaria em Fortaleza. Quando vi sua imagem desaparecendo, percebi que burrice era tocar nesse assunto naquele momento. Estava com saudade.

Chego na redação. Vazia. Espero algum tempo até o fotógrafo aparecer. Desembarcamos do carro na Central: tudo em volta é abandono e miséria. Um homem que passa por nós fala sozinho: "Jesus Cristo nunca passou por aqui". Até os cachorros são mais deprimentes, arrastam-se e resmungam. Velhinhos raquíticos e doentes se acomodam por horas em cadeiras plásticas à espera do almoço. Chega o governador, secretários, deputados e a claque. O evento todo dura menos de 20 minutos. Todos se recusam a comer o lanche servido dentro de sacos plásticos. E saem porta afora.

Eu deveria ter entrado no trem que o governador viajaria até São Cristóvão. Perdi a saída quando me distraí com uns velhinhos que denunciavam que ele não havia tocado na comida. Tentaram lhe entregar a trouxinha, alertaram funcionários. Por fim, repartiram entre si mais uma ração alimentar. Em segundos, havia me integrado ao grupo. Já sabia que uma senhora de 78 anos, moradora de Irajá, acordava às 4h todos os dias, há sete anos, para almoçar por R$ 1 no bandejão. Com a freqüência, fez os amigos que não tinha na vida (o marido morreu há 18 anos e a deixou sem filhos). Havia até uma espécie de líder comunitário do restaurante popular, que pleiteava para si o dever de brigar por causas comuns, como a manutenção do bebedouro.

Um negro alto de 74 anos, com aparência de 50, filho de angolanos, nascido com 12 dedos (assim como os filhos), todos os dentes originais, viúvo, morador da Cidade de Deus, caminhoneiro aposentado, compositor de sambas, rei dos malandros. Gervásio é uma fábrica de frases de impacto.

- Meu antigo celular está com a desdentada.

- Que desdentada?

- Se não colocar um vulgo na nega, ela não atende. Branquinha assim como você fica toda-toda de ser chamada de crioula. Nem que seja por um verão.


Se tem algo que não aprecia na vida é mulher com pé rachado e cheiro de arroz queimado. Gervásio melhorou meu dia. E até me fez escrever de novo.


[Por curto tempo. Agora volto à matéria do governador.]

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