Ela é pequena. Tem 1,52m. Quando percebi pela primeira vez a diferença entre a sua altura e a dos demais mortais, perguntei sem delongas: "Mãe, você é anã?" Ela disse que era apenas pequena, assim como toda sua família, e que talvez eu ficasse também. Alcancei a inacreditável marca de (quase) 1,70m.
Além das notáveis diferenças físicas, somos água e vinho em outros aspectos da vida. O que ela tem de pragmática, eu tenho de idealista. Ela é fã dos números e eu, das letras. Quanto mais ela desconfia das pessoas, mais acredito nelas.
Minha mãe - que, como se sabe agora, é pequena, nunca anã, pragmática, numérica e desconfiada - ingressou recentemente num mundo perigoso. O meu mundo. Percebi que algo havia mudado na casa quando, ao entrar na cozinha, avistei três panelas borbulhando em cima do fogão e uma pessoa compenetrada na leitura... de Honoré de Balzac.
E mais: ela havia passado a contar a história em capítulos em plantões semanais no seu laboratório. A cada semana, oferecia um trecho da saga aos colegas de trabalho. Pragmaticamente, me explicou o que achava de A Mulher de Trinta Anos: "Acho engraçado tanto amor e dor".
Há alguns meses, minha mãe começou a me pedir livros. Desde então, passaram por suas mãos, além de Balzac, Ernest Hemingway, Gabriel García Márquez, Milan Kundera e José Saramago... No início, tentava instrui-la sobre a importância de cada autor e de cada livro.
Ela, porém, fazia sempre a leitura que bem entendia e me respondia coisas terríveis. O Velho e o Mar? "O velho é chato demais, merece morrer". O Amor nos Tempos do Cólera? "Florentino Ariza não ama aquela mulher, é um doente mental. Essa é a única explicação". Ensaio sobre a Cegueira? "Os cegos precisam se civilizar de novo. Não agüento tanta sujeira".
As constatações nuas e cruas geraram debates e brigas sob este teto. Aos poucos, as mudanças ficaram mais claras, com suas referências aos autores ou aos livros em conversas corriqueiras, seu interesse em decifrar o sentido de uma passagem e sua vontade ansiosa de comentar o final da história.
Sempre que restam poucas páginas até o fim, em tom de aviso, ela fala para sua bibliotecária-filha: "Está acabando, qual será o próximo?" Por hora, ela ganhou dois: Todos os Nomes, Saramago, e O Estrangeiro, Camus.
Dos personagens cegos que ela mencionou nos últimos dias, perguntou, achando graça, se eu lembrava da "mulher que disse aonde tu fores, eu irei". Sim, eu me lembro, essa sou eu, mãe.
16 September 2008
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
No comments:
Post a Comment