01 February 2009

Sobre a miséria alheia

Há algum tempo sinto a necessidade de sistematizar minhas impressões sobre nosso olhar acerca da miséria alheia. Geralmente, causa-me desconforto quando a classe média, às vezes munida com boas intenções, aponta, comenta ou “reflete” sobre os mendigos debaixo da marquise, sobre as velhas pedintes na porta da igreja, sobre os pequenos malabaristas do sinal de trânsito.

Nosso comentarista de cada dia sente que não pode passar por aquilo sem oferecer sua humilde opinião; sem “alertar” os outros; sem mostrar que ele mesmo, ao contrário do que aparenta na sua rotina do escritório ou da faculdade, está carregado de sentimentos de nobreza e solidariedade. Algumas vezes, os comentários seguem a linha do “lirismo” e da “poesia”; outras, da “análise sociológica e política”. Mas a classe média passa; o mendigo, a velha e o malabarista continuam.

Nesses casos específicos do cotidiano, o silêncio retumbante me parece mais honesto que os floreios verbais dos que apenas... passam. Essa “pequena denúncia”, poética ou sociológica, me irrita especialmente por servir como substituto a um verdadeiro comprometimento com a transformação social e a justiça.

Com grande freqüência, sou consumida pela enorme vergonha que me causa a miséria alheia, sobretudo por minha incapacidade de enfrentá-la. Mais nova, acreditava poder resolvê-la com meu próprio voluntarismo: bastava abdicar dos meus privilégios de classe e encampar os discursos de igualdade, que o problema estaria no caminho da solução. Isso, obviamente, se revelou uma grande mentira. Mesmo que abrisse mão de perfume e champagne, a parte fundamental dos meus privilégios de classe permaneceria intocada: décadas de educação em escolas particulares, cursos de língua, universidade federal – entre outros fatores que garantiriam, ad infinitum, meu lugar destacado na pirâmide social, muito acima do exército de miseráveis Brasil afora.

Mesmo que conseguisse cumprir metas pretensiosas de privação material, tal fato não garantiria automaticamente outro destino para o mendigo, a velha e o malabarista. Eles continuariam nas mesmas posições em que estão hoje. Ao mesmo tempo, não se trata de naturalizar uma vida de privilégios – é hipócrita negá-los, mas ainda pior não criticá-los nem colocá-los (os irreversíveis) a serviço de valores justos.

Nosso desafio é pertencer a uma classe que funciona como porrete esmagando a maioria da população (não podemos adulterar nossa realidade individual para nos livrarmos da carga de culpa) e, ao mesmo tempo, saber fazer a grande crítica da sociedade – tentando viver com coerência, embora nem sempre conseguindo, e nos preparando para desempenhar algum papel numa possível ruptura, que talvez nunca cheguemos a ver.


(Depois continua).

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