10 October 2006

Momentos de banquete


Sr. Candidato à Presidência e Dona Lu Alckmin inauguram a Daslu*

Trecho escrito num sábado, 6 de agosto de 2005
(Título original: A sociedade em tempos de crise)

A cidade de Ouro Preto, no século 18, estava entre as mais ricas do mundo e, contraditoriamente, sua elite chegou a comer cachorros e ratos para sobreviver durante as crises de abastecimento. Enquanto alguns poucos fantasiavam outra realidade com o falso luxo patrocinado pelo ciclo do ouro - a dos chapéus franceses, tapetes persas e rendas holandesas -, toda a sociedade padecia de uma fome crônica e perfeitamente evitável. Hoje, a perseguição cega pelo controle da inflação e por indicadores econômicos que se encerram neles mesmos é uma face da mesma negligência. O caso Daslu, sua roupagem social. Ambos os exemplos representam os antigos e insistentes erros da elite que se alimenta de momentos de riqueza, sem visão da sociedade em que se insere e sem perspectivas para longo prazo.

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* Curiosamente, coloquei as palavras "Daslu" e "Alckmin" no Google e apareceram apenas três fotografias: uma da Caros Amigos (esta que publiquei), uma do Vermelho.org e a última da Mídia Independente. Embora o então governador de São Paulo tenha sido figurinha badalada na inauguração do complexo de luxo, mais tarde enquadrado pela PF como sonegador fiscal do país.

03 October 2006

Um textículo de presente

Começo da noite, temperatura baixa, chovia até dentro do metrô. Num ato reflexo (que se repete com certa freqüência), fiz sinal para a composição parar. Pensava o óbvio ululante do potencial cenográfico da comprida Estação da Cinelândia, lugar ótimo para correrias asmáticas, divagações sentimentais, cenas de despedida nas janelas e de encontros com mulheres pedestálticas.

Mentira. Estava com fome e pensava em comer um pastel chinês no Largo do Machado. A história está dentro do vagão. A ficção, assim como a introdução do texto, é mentira, porque a realidade é composta de inconvenientes entediantes. Vagão vazio, com algumas poucas cadeiras disponíveis. Prefiro recostar em pé, ao lado da porta. Por coincidência, em cima de uma pintura no chão, destinando o espaço para deficientes. Não demora o fechar das portas para um senhor me repreender por ocupar o espaço. Respondo que o vagão está vazio. Ele pergunta se eu sou deficiente. "Tenho três testículos" (me imaginei dizendo com um ar blasé). Não disse isso. Só fui sentar longe dali.

No metrô do Rio só te importunam. No de São Paulo, já ouvi histórias de um cara que, na ida para o trabalho, tem o costume de escovar os dentes no vagão. Cospe nos intervalos, quando as portas abrem. Já vi não apenas um cara praticando air guitar, como toda sua banda surda, sem constrangimentos. Um verdadeiro mercado negro funciona em cima dos trilhos. No de lá, fizeram até filme. Nunca vi uma nórdica com casaco de esquimó como aquela sentada em nosso banco bege, na vinheta do Festival do Rio. O metrô daqui é chato pra caralho.

* Como o título já diz, o textículo me foi dado de presente. O autor é Sergio Duran.

Animal de confissão

O homem ocidental, escreve Foucault, tornou-se um animal de confissão. A compulsão por mergulhar em si mesmo e falar, especialmente sobre a própria sexualidade, num conjunto de localizações sociais cada vez mais amplo (originalmente a religião, mas, depois, os relacionamentos amorosos, as relações familiares, a medicina, a educação, e assim por diante) aparenta ser uma resistência libertadora para a objetificação do biopoder*. Foucault, no entando, acredita que isso é uma ilusão. A confissão expõe mais a pessoa ao domínio do poder.
(Norman Fairclough)

* O Foucault fala da objetificação do homem em microesferas do poder (como em exames educacionais ou médicos, nas relações de trabalho, etc). Isso se daria pela tentativa de "documentação" do homem como um dado caracterizado por n variáveis. Quando subvertemos as variáveis esperadas, nos confessando pessoas mais complexas e imprevisíveis do que as microesferas podem suportar, achamos, de alguma forma, que estamos subjetivando nossa existência. É neste momento que alguns dizem "Ih, vai dar merda". Será que Foucault tem razão?