17 August 2007

A grandeza argentina

Dei "Ficções", do Borges, para um amigo em seu aniversário. Nesta semana, ele me disse "A verdade? Não gostei. Pareceu arrogante". Respondi "A verdade? Eu sabia que não gostaria quando comprei o livro".

Este é o problema fundamental em dar presentes: saber se devemos dar o que a pessoa vai gostar ou se devemos abrir uma janelinha na vida dela, para que veja algo que não veria sozinha. É como tirar algo da invisibilidade e fazê-lo existir no mundo de outra pessoa. Prefiro sempre esta opção.

E-MAIL PARA O AMIGO

Achei uma entrevista do Cortázar em que ele fala sobre escrever bem e escrever de verdade. Claro que, para mim, Borges escreve inacreditavelmente das duas maneiras. Mas compreendo quando as pessoas não se sentem tocadas mesmo com tal nível de refinamento estético. A verdade dele não é a sua verdade. Eu sei como é isso. Segue o texto. Um beijão

“Es muy fácil advertir que cada vez escribo menos bien, y ésa es precisamente mi manera de buscar un estilo. Algunos críticos han hablado de regresión lamentable, porque naturalmente el proceso tradicional es ir del escribir mal al escribir bien. Pero a mí me parece que entre nosotros el estilo es también un problema ético, una cuestión de decencia. ¡Es tan fácil escribir bien! ¿No deberíamos los argentinos (y esto no vale solamente para la literatura) retroceder primero, bajar primero, tocar lo más amargo, lo más repugnante, lo más obsceno, todo lo que una historia de espaldas al país nos escamoteó tanto tiempo a cambio de la ilusión de nuestra grandeza y nuestra cultura, y así, después de haber tocado fondo, ganarnos el derecho a remontar hacia nosotros mismos, a ser de verdad lo que tenemos que ser?” (Cortázar)

16 August 2007

A vingança do museu

(Publicado no Direto da Redação: www.diretodaredacao.com)

Quarenta anos depois de Hélio Oiticica ter levado a mostra Nova Objetividade Brasileira ao Museu de Arte Moderna do Rio, voltei à cena do crime para ver exposição recém-chegada do circuito Chicago-Londres-Berlim-Nova York. Quando a Tropicália surgiu, eu era menos que um espermatozóide, menos que uma idéia maliciosa na cabeça dos meus pais. Ao longo da adolescência, fui montando um mosaico dos meus preferidos nas artes, sem saber que Ferreira Gullar, Zé Celso, Glauber Rocha e Caetano Veloso tinham qualquer relação entre si. Vieram as muitas explicações para o movimento. Engajamento, não engajamento, exotismo, liberação, brasilidade, estrangeirismo. A funcionária do MAM que nos recebeu, porém, parecia certa do que se tratava a Tropicália: "Sejam bem-vindos. Aqui é proibido proibir!"

Apesar de certa desconfiança sobre aquelas palavras mágicas, meu amigo e eu estávamos decididos a viver uma tarde catártica no MAM. Lá estava a primeira instalação a ser sentida. Um minuto após ter dito "É proibido proibir", a mesma mulher, vestida de preto da cabeça aos pés, volta a se manifestar "É proibido pisar de tênis nas pedrinhas". Ok, eu tiro o tênis. Seguimos caminho dentro da instalação, andando por palha e espuma. Sentamos num chão de terra para conversar. "Nossa, que bonito, nunca vi o museu sentada em chão de terra. Tão diferente". Quisemos tirar uma foto deste ângulo de visão. A funcionária volta: "É proibido tirar fotos". Protestamos: "Mas não é proibido proibir?" Ela responde que quem nos oprime é o museu, não a exposição.

Nesta altura, sentimos a necessidade de nos rebelar, de tocar fogo no museu, de pirar esses visitantes burocráticos, de fazer com que todos os funcionários vestidos de preto corressem atrás de nós. Afinal, estamos aqui para viver a Tropicália e "vocês não estão entendendo naaaaada". Seguimos viagem rumo ao segundo andar. Com fome, tiro da bolsa uma tangerina. Foi questão de segundos até que um robozinho viesse me dizer que era proibido comer. Deixa eu ver se entendi: eles podem expor duas araras numa gaiola e achar que isso é brasilidade; eu não posso comer um fruto da minha própria terra.

Em volta, aquelas obras com dizeres "Lute" e "Pense" só podiam ser provocação. Deixa para lá. Chegamos aos objetos sensoriais da Lygia Clark. Colocamos as luvas e começamos a mexer nas bolas. Criamos uma brincadeira de jogar para o outro bolas de diferentes pesos. Não estávamos atirando nas janelas. Apenas passando com mais rapidez para sentir as diferenças de textura e volume. Surge o carinha de preto: "É proibido jogar com as bolas. Vocês só podem tocá-las". Arghhhhhhhh. O mesmo veio dizer, logo depois, que estávamos andando no sentido errado da exposição. Ignoramos. Apesar das seguidas opressões, continuamos nosso trajeto como Alice no País das Maravilhas. Prestes a entrar em outra instalação, uma visitante repreende nossa distração rispidamente: "Isso aqui é uma fila!", referindo-se a ela mesma e à amiga. Calma, calma, não estamos no banco, você não está no seu horário de almoço tentando pagar a conta de luz.

Saímos da instalação de cara para a Roda dos Prazeres, da outra Lygia, a Pape. Pela primeira vez, demos de ombros, feito crianças tolidas e educadinhas, e não nos atiramos. Já estávamos quase no fim da exposição quando vi uma peça do Pedro Escosteguy: uma caixa com as portas fechadas pelos canos cruzados de duas armas. Claramente, era preciso abrir os dois canos e ver o que havia dentro: uma urna com o aviso "Vote". Ainda estava lendo o "Vote" quando percebi na minha lateral um dedo em riste. Mais uma funcionária de preto me apontando a faixa branca no chão e dizendo que era proibido abrir as portas da caixa. Expliquei que as idéias externas e internas da obra a completavam, uma não existia sem a outra. A mulher repetiu que era proibido e encerrou minha visita com a célebre frase: "O artista não se discute".

Meu amigo suspeitou que fizéssemos parte, sem saber, de alguma excursão turística para a Tropicália, coisa antiga e admirável como catedral adornada em ouro. Voltamos à contemplação divina da Idade Média. Ou fui enganada pelos neoconcretos, ou eles sofreram a mais terrível vingança do museu.

15 August 2007

Tropicália sim

Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?

Vocês tem coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música, que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado.

É a mesma juventude que vai sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem!

Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada!

Hoje não tem Fernando Pessoa!

Eu hoje vim dizer aqui que quem teve coragem de assumir a estrutura do festival, não com o medo que o Sr. Chico de Assis pediu, mas com a coragem, quem teve essa coragem de assumir esta estrutura e fazê-la explodir foi Gilberto Gil e fui eu, não foi ninguém.

Foi Gilberto Gil e fui eu!

Vocês estão por fora! Vocês não dão para entender!

Mas que juventude é essa? (gritos)

Vocês jamais conterão ninguém!

Vocês são iguais sabe a quem?

(Tem som no microfone?)

Vocês são iguais sabe a quem?

Àqueles que foram a Roda Viva e espancaram os atores... Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada! E por falar nisso:

VIVA CACILDA BEKER!
VIVA CACILDA BEKER!


Eu tinha me comprometido em dar esse VIVA aqui, não tem nada a ver com vocês!

O problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música brasileira!

O Maranhão apresentou esse ano uma música, com arranjo de charleston, sabem o que foi?

Foi a "Gabriela" do ano passado que ele não teve coragem de, no ano passado, apresentar, por ser americana.

Mas eu e o Gil já abrimos o caminho, o que é que vocês querem? Eu vim aqui para acabar com isso!

Eu quero dizer ao júri : me desclassifique! Eu não tenho nada a ver com isso! Nada a ver com isso!

Gilberto Gil! Gilberto Gil está comigo para nós acabarmos com o festival e com toda a imbecilidade que reina no Brasil!

Acabar com tudo isso de uma vez!

Nós entramos em festival pra isso! Não é Gil?

Não fingimos, não fingimos, aqui, que desconhecemos o que seja festival não!

Ninguém nunca me ouviu falar assim! Sabe como é?

Nós, eu e ele, tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas, e vocês?

E vocês?

Se vocês... Se vocês em política forem como são em estética, estamos feitos!


Me desclassifiquem junto com o Gil!

Junto com ele, tá entendendo?

E quanto a vocês... (incompreensível).

O júri é muito simpático mas é incompetente.

DEUS ESTÁ SOLTO!

(Caê, no III Festival da Canção)

11 August 2007

Na sombra

Acaso lo que digo no es verdadero; ojalá sea profético.


04 August 2007

Acumulação primitiva de riquezas

O mundo inteiro cabia no meu quarto. Muitas pessoas também. Passávamos dias inteiros ouvindo música alta, escrevendo idéias atiradas na lixeira, tirando coisas do lugar, largando copos semi-cheios pelos cantos, esperando a hora de sair chegar, chegando para não sair mais, não mexa na caixa de pensamentos!, você tem um quarto rosa?, não é rosa, agora é lilás, a cor acalma, a girafa de madeira, os retratos de queridos, a lista de livros furtados e de ladrões, o anúncio do professor de tango Daniel Raphael, o cartão do restaurante peruano, o duende da minha avó, o copinho de tequila, o Marvin e sua hélice amarela, uma meia listrada atrás do monitor, a limpeza nos aproxima da divindade, eu não sou divina, meu quarto não é templo, eu preciso de outros quartos, este entupiu, é a acumulação primitiva de riquezas.

O mundo também coube dentro de uma mochila. Eu despachei cinco quilos de mundo pelo correio, de Manaus para o Rio.