16 August 2007

A vingança do museu

(Publicado no Direto da Redação: www.diretodaredacao.com)

Quarenta anos depois de Hélio Oiticica ter levado a mostra Nova Objetividade Brasileira ao Museu de Arte Moderna do Rio, voltei à cena do crime para ver exposição recém-chegada do circuito Chicago-Londres-Berlim-Nova York. Quando a Tropicália surgiu, eu era menos que um espermatozóide, menos que uma idéia maliciosa na cabeça dos meus pais. Ao longo da adolescência, fui montando um mosaico dos meus preferidos nas artes, sem saber que Ferreira Gullar, Zé Celso, Glauber Rocha e Caetano Veloso tinham qualquer relação entre si. Vieram as muitas explicações para o movimento. Engajamento, não engajamento, exotismo, liberação, brasilidade, estrangeirismo. A funcionária do MAM que nos recebeu, porém, parecia certa do que se tratava a Tropicália: "Sejam bem-vindos. Aqui é proibido proibir!"

Apesar de certa desconfiança sobre aquelas palavras mágicas, meu amigo e eu estávamos decididos a viver uma tarde catártica no MAM. Lá estava a primeira instalação a ser sentida. Um minuto após ter dito "É proibido proibir", a mesma mulher, vestida de preto da cabeça aos pés, volta a se manifestar "É proibido pisar de tênis nas pedrinhas". Ok, eu tiro o tênis. Seguimos caminho dentro da instalação, andando por palha e espuma. Sentamos num chão de terra para conversar. "Nossa, que bonito, nunca vi o museu sentada em chão de terra. Tão diferente". Quisemos tirar uma foto deste ângulo de visão. A funcionária volta: "É proibido tirar fotos". Protestamos: "Mas não é proibido proibir?" Ela responde que quem nos oprime é o museu, não a exposição.

Nesta altura, sentimos a necessidade de nos rebelar, de tocar fogo no museu, de pirar esses visitantes burocráticos, de fazer com que todos os funcionários vestidos de preto corressem atrás de nós. Afinal, estamos aqui para viver a Tropicália e "vocês não estão entendendo naaaaada". Seguimos viagem rumo ao segundo andar. Com fome, tiro da bolsa uma tangerina. Foi questão de segundos até que um robozinho viesse me dizer que era proibido comer. Deixa eu ver se entendi: eles podem expor duas araras numa gaiola e achar que isso é brasilidade; eu não posso comer um fruto da minha própria terra.

Em volta, aquelas obras com dizeres "Lute" e "Pense" só podiam ser provocação. Deixa para lá. Chegamos aos objetos sensoriais da Lygia Clark. Colocamos as luvas e começamos a mexer nas bolas. Criamos uma brincadeira de jogar para o outro bolas de diferentes pesos. Não estávamos atirando nas janelas. Apenas passando com mais rapidez para sentir as diferenças de textura e volume. Surge o carinha de preto: "É proibido jogar com as bolas. Vocês só podem tocá-las". Arghhhhhhhh. O mesmo veio dizer, logo depois, que estávamos andando no sentido errado da exposição. Ignoramos. Apesar das seguidas opressões, continuamos nosso trajeto como Alice no País das Maravilhas. Prestes a entrar em outra instalação, uma visitante repreende nossa distração rispidamente: "Isso aqui é uma fila!", referindo-se a ela mesma e à amiga. Calma, calma, não estamos no banco, você não está no seu horário de almoço tentando pagar a conta de luz.

Saímos da instalação de cara para a Roda dos Prazeres, da outra Lygia, a Pape. Pela primeira vez, demos de ombros, feito crianças tolidas e educadinhas, e não nos atiramos. Já estávamos quase no fim da exposição quando vi uma peça do Pedro Escosteguy: uma caixa com as portas fechadas pelos canos cruzados de duas armas. Claramente, era preciso abrir os dois canos e ver o que havia dentro: uma urna com o aviso "Vote". Ainda estava lendo o "Vote" quando percebi na minha lateral um dedo em riste. Mais uma funcionária de preto me apontando a faixa branca no chão e dizendo que era proibido abrir as portas da caixa. Expliquei que as idéias externas e internas da obra a completavam, uma não existia sem a outra. A mulher repetiu que era proibido e encerrou minha visita com a célebre frase: "O artista não se discute".

Meu amigo suspeitou que fizéssemos parte, sem saber, de alguma excursão turística para a Tropicália, coisa antiga e admirável como catedral adornada em ouro. Voltamos à contemplação divina da Idade Média. Ou fui enganada pelos neoconcretos, ou eles sofreram a mais terrível vingança do museu.

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