E as notícias que vêm do Nordeste:
Cícero Adriano diz:
agora quinta-feira a polícia tocou fogo num acampamento nosso até o cachorro morreu queimado.
Carla diz:
e foram pra onde agora?
Cícero Adriano diz:
voltaram para o mesmo local.
Cicero Adriano diz:
é muita coragem q esse povo tem, pode acreditar.
...
Sentei para escrever sobre outra coisa. O MSN abriu sozinho e lá surgiu Cícero Adriano, que conheci na beira de uma estrada qualquer na Venezuela. Eu, sozinha com minhas feições de venezuelana (colombiana, equatoriana ou peruana), de um lado. Do outro, uma pessoa com jaqueta camuflada e bolsa atravessada me dizendo: “Que fome da porra! Quer di-vi-dir al-go pa-ra co-mer?”. Espaçou as sílabas para que meu espanhol entendesse seu português carregado de Vidas Secas. “Só vou beber alguma coisa, estou sem fome”, disse, numa resposta auto-explicativa sobre minha origem. Mas acabei ficando por perto, enquanto ele comia uma hallaca. Sempre confiei em desconhecidos.
Nos dois dias em que dividimos ônibus, comida, bebida, cigarros e histórias descobri que Adriano era agrônomo da Via Campesina em Alagoas. Como eu, voltava do Fórum Social Mundial de Caracas. Foi parar na Venezuela para checar em que pé estava a reforma agrária, prevista na Lei de Terras, de 2001. Falamos muitas horas sobre a terra, sobre a luta no campo. E talvez porque estivéssemos trilhando o caminho de volta, as memórias que retornam ao início foram freqüentes. Então, lembro de Adriano dizendo sobre seu pai lavrador, sobre o político de sua cidade que o mandou estudar em João Pessoa. Da vida de mordomia proporcionada pelo político: apartamento à beira-mar, faculdade federal, dinheiro, carro. “Estava deslumbrado, mas parei e lembrei de onde vim”. Largou tudo que veio fácil, largou o padrinho político. O pai não gostou. E ele arranjou outro modo de sobreviver até acabar a faculdade.
Hoje, Adriano é um híbrido de homem da terra e de doutor da capital. Me contou das ocupações com completa noção do contraste entre o seu papel (da turma do “deixa disso”) e o dos camponeses, que botam abaixo em um movimento só de foice as cercas de arame. Certa vez, ele, temeroso com as conseqüências, tentou impedir: “Fulano, não faça isso, vai ser bala depois”. O homem o agarrou e cuspiu fogo pelos olhos: “Se é para morrer, eu vou morrer. Mas ninguém vai me expulsar mais de lugar nenhum”. Adriano calou a boca, como faz muitas vezes quando tenta organizar cientificamente a plantação dos acampamentos. “Eles sabem mais do que a gente. Fizeram isso a vida toda. Às vezes, resistem a escutar. Tenho que pegar a enxada para dar uma moral, mas não agüento mais que meia hora debaixo do sol. Eles ficam o dia todo”.
Nunca mais nos vimos, mas nos falamos de tempos em tempos. “Quais são as notícias das bandas do Norte?”. E aí ele me responde como vai o movimento, a repressão, as eleições locais. Conto daqui, dos disparates da nossa governadora e da mulher que foi serrada ao meio em Botafogo. “Tem falado com o pessoal do Fórum? Vai rolar barco ou avião fretado para Nairóbi no ano que vem?”. O trabalho nos afasta aos poucos do que era vivo naquelas estradas empoeiradas. No fundo, sabemos que Reveillon igual ao de 68, só uma vez. Viagem igual àquela, só uma também.
02 September 2006
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