Alimento a sensação de que serei, muito em breve, amiga de bons escritores. E não porque, subitamente, ficarei íntima de Saramago e García Márquez, e muito menos dos finados. Mas confio no talento dos amigos, por mais "matemáticos ou físicos" que sejam.
Até aqueles que não costumam escrever uma linha, com costume, me oferecem os melhores contos que uma leitora pode desejar. "Da cozinha, apareceu uma cabecinha à espreita na porta, que, timidamente, perguntou: Prosa ou poesia?". Este é o final de uma das histórias que mais gosto de lembrar, embora sobre ela não tenha sido escrito nada, nem filmado nada ainda.
Pés, olhos e a alma (Diogo Buarque Fransozi)
Prólogo:
Os pés são a porta da alma. Na labuta fatigante dos meses de colheita, os pés descalços calejam na terra quente de sol. Os olhos refletem os calos e a insensibilidade dos que arejaram e queimaram nas fazendas. Um menino que cresceu de botinha ortopédica reflete nos olhos a insegurança e a dor de pisar em pedrinhas. Pés descalços no morro, correndo de bala, correndo com raiva, matando por pouco. Pequenos pés femininos. Pés apertados de bailarinas sentem todo esforço no pé. O homem carrega e anda o mundo com os pés.
Capítulo Único:
Quando desci o Pukuruni descalço e retornei a Cuzco de chinelo pelas pedras que margeiam os trilhos do trem por trinta quilômetros, coloquei a culpa no azar e machuquei meus pés. Os mensageiros Incas, com seus chinelos de palha e couro, corriam de Macchu Picchu a Cuzco, uma distância pelo menos quatro vezes maior, em quatro horas, provavelmente sem machucar os pés. Portanto, não tenho pés de guerreiro. Lembro de andar em carpete e em pedra, de usar tênis, poucas vezes sapatos, bastante chinelo, como qualquer cidadão carioca. Um dia antes de ir para Paris, eu olhei meu tênis e vi que estava velho, que tinha um buraco no lugar onde fica o mindinho. Todos os meus amigos aqui tinham comprado algum calçado, porque é barato. No dia de ir para Paris, passei numa loja, vi uma chuteira em promoção e comprei. Dei meu tênis velho para um mendigo na rua e fui pra Paris. Logo de início, indo da garagem do trem para o albergue, percebi a merda que eu tinha feito. O tênis novo estava esmigalhando meu pé. E não era um tênis novo qualquer, era uma chuteira. Arrastava no calcanhar e amassava o mindinho na frente. Andei até o outro dia, até não suportar mais minha unha entrar no outro dedo, alguns bandaids no calcanhar e uma bolinha de sangue pisado no mindinho. Uma bailarina pode dançar horas com aquela sapatilha apertada, gira, da plié, cambalhota e manobras diversas com aquele sapato triturando seu pé. Mas também tampouco tenho pés de bailarino. Na noite do dia seguinte pedi arrego e, agonizando de dor, vi o oásis: uma loja no meio de restaurantes que vendia apenas calçados às oito/nove da noite. Tudo mais fechado. Comprei o mais barato, um sapato de pano confortável que agradava a meus pés. Senti alívio. Dois minutos depois, a chuva. Meus pés se ensoparam e eu senti bastante frio. Alguns momentos preferi andar descalço, quando parava de chover. Mas meu pé não é planta para ninguém regar, nem pinico pra mijar, nao é pano de chão para secar água derramada, nem esponja.
Epílogo:
Os olhos são o espelho da alma. Os meus refletem o esquecimento e descaso, além de um humor bizarro. E olham sorrindo do último andar de uma torre gigante meus próprios pés láááá embaixo, quase inalcançáveis, sendo devorados por cupins.
31 August 2006
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