"Grilos" (Roberto Carlos - Erasmo Carlos)
Se você passar daquela porta
Você vai ver
Como é que são as coisas
Como é que estão as coisas
Sei que o mundo pesa muitos quilos
Não leve a mal se eu lhe pedir
Para cortar os grilos
Pra cortar os grilos
Pra cortar os grilos
Pra cortar os grilos
Aí, então, você vai se convencer
Que se o mundo pesa
Não vai ser de reza
Que você vai viver
Descanse um pouco
E amanheça aqui comigo
Sou seu amigo, você vai ver
Sou seu amigo, você vai ver
Desenho do Mitchell (link ao lado) e música escolhida por ele também. A única pessoa que conheço capaz de aderir à expressão "grilos".
20 November 2006
15 November 2006
Miguel não esquece um rosto
Jamais esquecia um rosto. Talvez o único traço que o lembrasse um mafioso, no restaurante de piso e paredes de madeira em que tomava uma sopa fumegante. Um homem com dentes escurecidos rompia o silêncio do ambiente com sapatos que faziam barulho. Miguel fez qualquer expressão de desdém, mantendo o tronco e o rosto tombados na direção da tigela. Pedaços de pão boiavam à sua frente, ele arrastava a colher rente às bordas, deixando que o líquido envolvesse e sugasse para o fundo a parte sólida do seu almoço. Era tímido ou entediado, ainda não havia decidido. Além disso, chovia lá fora, o que sempre respingava em seu humor. O velho insistia em estalar o assoalho com seus sapatos gastos-porém-engraxados. Aliás, a superfície faiscava e refletia as finas listras brancas do paletó negro. A gravata era vermelha e ele usava chapéu, que tirou ao chegar no balcão e pedir uma garrafa de vinho. Barato. Segurou pelo gargalo sua botella de vidro grosso e verde. As mãos frouxas deixavam a sensação de que tudo estava prestes a cair. Sentou e bebeu até que copo e garrafa começassem a ser estalar no encontro furtivo das doses idas e vindas. Estava numa mesa encostada à parede e, chapéu caído na testa, parecia fazer a sesta.
Miguel desistiu do trabalho, às vezes era contra o conceito, e inventou uma consulta dentária emergencial. A sopa tinha acabado e não restava dinheiro para outra coisa. Passou a tarde palitando os dentes e admirando a simetria dos seus dois pés acomodados em dois all-stars espantosamente idênticos. No fundo, sentia-se incomodado pela ausência de uma mulher corpulenta, decote indiscreto, batom vermelho e cabelos negros presos em um rodete quase como o de Evita. Ela deveria estar na mesa encostada na parede, onde agora se acomodava o velho. Seu nome talvez fosse Glória. Mas não estava ali para que pudesse perguntar e nem mesmo para reconhecer o seu rosto. Em outra ocasião, Glória estava sentada com uma postura cheia de orgulho, costas eretas, queixo levantado. Não tocava no copo de vinho. Mantinha os olhos muito negros espremidos e atentos numa direção fixa. A nuca do velho dos sapatos barulhentos. Ele vestia a mesma roupa, naquela vez. E estava de costas para a mulher. O chapéu fazia sombra no seu rosto. Dividida em quatro partes, a face só era iluminada no quadradinho inferior à esquerda pela claridade que vinha da janela.
Miguel não se lembra de nada que pudesse ter alterado esta cena. Os dois ficaram assim por muitos minutos. Quando o rapaz voltou, pouco tempo depois, homem e mulher ainda tinham as mesmas expressões, ocupavam o mesmo lugar no restaurante. O garoto estava inebriado pelo casal, dois amantes gastos como sapatos, cheios de tapas na cara e vociferações silenciosas. Pensou que, em algum momento, ela teria tramado trancá-lo em um quarto escuro para sempre e fazer visitas íntimas de vez em quando. Ele sabia disso e adorava a idéia, enquanto não se concretizasse, claro. Ficava exaustivamente animado com as pretensões ensandecidas da mulher. Queria colocá-la louca e rodopiar com ela num concurso de tango sem regras. Glória teria morrido? De droga, de raiva, de susto?
Miguel estava desapontado. Há cerca de um ano, conhecera os dois num retrato em preto-e-branco de um fotógrafo de rua na Feira de San Telmo. Segurou nas mãos, olhou bem, contou os trocados do bolso, só dariam para uma sopa. Sopa ou fotografia? Fazia frio naquela manhã e já era quase horário do almoço. Deu uma volta na praça e voltou à banca em que o casal permanecia imóvel. Passou os olhos pela última vez e foi atrás da sopa. Cedo ou tarde, reconheceria-os por aí.
Miguel desistiu do trabalho, às vezes era contra o conceito, e inventou uma consulta dentária emergencial. A sopa tinha acabado e não restava dinheiro para outra coisa. Passou a tarde palitando os dentes e admirando a simetria dos seus dois pés acomodados em dois all-stars espantosamente idênticos. No fundo, sentia-se incomodado pela ausência de uma mulher corpulenta, decote indiscreto, batom vermelho e cabelos negros presos em um rodete quase como o de Evita. Ela deveria estar na mesa encostada na parede, onde agora se acomodava o velho. Seu nome talvez fosse Glória. Mas não estava ali para que pudesse perguntar e nem mesmo para reconhecer o seu rosto. Em outra ocasião, Glória estava sentada com uma postura cheia de orgulho, costas eretas, queixo levantado. Não tocava no copo de vinho. Mantinha os olhos muito negros espremidos e atentos numa direção fixa. A nuca do velho dos sapatos barulhentos. Ele vestia a mesma roupa, naquela vez. E estava de costas para a mulher. O chapéu fazia sombra no seu rosto. Dividida em quatro partes, a face só era iluminada no quadradinho inferior à esquerda pela claridade que vinha da janela.
Miguel não se lembra de nada que pudesse ter alterado esta cena. Os dois ficaram assim por muitos minutos. Quando o rapaz voltou, pouco tempo depois, homem e mulher ainda tinham as mesmas expressões, ocupavam o mesmo lugar no restaurante. O garoto estava inebriado pelo casal, dois amantes gastos como sapatos, cheios de tapas na cara e vociferações silenciosas. Pensou que, em algum momento, ela teria tramado trancá-lo em um quarto escuro para sempre e fazer visitas íntimas de vez em quando. Ele sabia disso e adorava a idéia, enquanto não se concretizasse, claro. Ficava exaustivamente animado com as pretensões ensandecidas da mulher. Queria colocá-la louca e rodopiar com ela num concurso de tango sem regras. Glória teria morrido? De droga, de raiva, de susto?
Miguel estava desapontado. Há cerca de um ano, conhecera os dois num retrato em preto-e-branco de um fotógrafo de rua na Feira de San Telmo. Segurou nas mãos, olhou bem, contou os trocados do bolso, só dariam para uma sopa. Sopa ou fotografia? Fazia frio naquela manhã e já era quase horário do almoço. Deu uma volta na praça e voltou à banca em que o casal permanecia imóvel. Passou os olhos pela última vez e foi atrás da sopa. Cedo ou tarde, reconheceria-os por aí.
05 November 2006
Assunto censurado
- Sobre o que é o roteiro?
- Um casal que está numa estrada...
- Um casal?! (Um tom mais alto)
- É... (Pausa) Eles têm um conflito ao longo da viagem. A mulher acha que ele deseja que ela seja outra coisa, começa a agir de forma diferente. No início, ele curte, entra no clima. Mas depois fica encanado, pensando que ela havia sido até ali uma falsa. Os dois...
- Por favor! Não agüento mais histórias sobre relacionamentos.
Entre um chope e outro, garçons para lá e para cá, alguém comenta do trabalho, outro do tempo que virou, um terceiro sobre um disparate do vizinho milico, volta ao primeiro que lembra de uma história curta envolvendo os presentes, eles riem, a graça passa, ninguém está bêbado ainda, parece que não ficarão nesta noite, aí alguém, meio sem jeito, toca num assunto maior que qualquer clichê sobre trabalho, tempo e nostalgia juvenil. Relacionamentos. Minutos iniciais reservados à negação, relacionamentos aniquilam bons momentos da vida, não se pode pensar em paz, beber com os amigos, sair sem avisar, mudar de idéia sem ser questionado “Você não era assim antes...”. Quantos anos perdidos e pessoas e festas e sacadas geniais sobre a vida – tudo isso trocado pela necessidade sub-humana (sim, porque a humanidade pode mais!) de fazer alguém caber no ‘seu’ sonho até descobrir que “calma aí, de quem é esta merda de sonho?”
Mas alguém desliza melancolicamente o dedo indicador na borda do copo, olha para a espuma do chope, faz cara de quem se incomoda com alguma coisa escondida. De repente, todos se incomodam, querem falar, mastigam o passado, esperam que o futuro venha de alguma forma bem previsível para preencher determinadas expectativas. “Alguém para emprestar a escova de dente”, “Mas isso não é anti-higiênico?”, “Fazer e levar crianças para ouvir histórias na pracinha da Flip”, “Quem sabe passar o fim de semana em casa, ouvi dizer que isso é divertido a dois”, “Que pobreza imaginativa...” etc. Fase de maturação.
Há ainda quem cultue a negativa. Em rodas de amigos, são os sujeitos rapidamente catalogados como os adultos que não cresceram – típicos das séries americanas de televisão. Mas nem sempre o fundo disso tudo são risadinhas artificiais de um auditório invisível. Inábeis à intimidade humana ou inadaptados ao cativeiro de emoções fáceis? Alguns, talvez, sejam o que restou da raça de ultra-românticos. Uma horda de radicais do sentimento puro, capazes de negar simulacros made in China por aí. Apaixonar-se deveria ser, para eles, idéia tão obscura como a poeira cósmica que vaga pelo espaço. Se um dia esbarrar com ela, “Óhhhhhhh, poeira cósmica!”, o chão tremerá abaixo dos seus pés – isto é, se houver chão. Mas não se sabe, não se viu e nenhum registro dos sobreviventes é real o suficiente para se fiar. Os xiitas dos relacionamentos odeiam o déjà vu, a mínima possibilidade de reviver o que já foi vivido – por ele próprio ou por seus antecessores. Eles só querem mesmo saber até onde iriam com alguém – não importa se de Palio Weekend tamanho família ou carona na boléia de um caminhão.
- Um casal que está numa estrada...
- Um casal?! (Um tom mais alto)
- É... (Pausa) Eles têm um conflito ao longo da viagem. A mulher acha que ele deseja que ela seja outra coisa, começa a agir de forma diferente. No início, ele curte, entra no clima. Mas depois fica encanado, pensando que ela havia sido até ali uma falsa. Os dois...
- Por favor! Não agüento mais histórias sobre relacionamentos.
Entre um chope e outro, garçons para lá e para cá, alguém comenta do trabalho, outro do tempo que virou, um terceiro sobre um disparate do vizinho milico, volta ao primeiro que lembra de uma história curta envolvendo os presentes, eles riem, a graça passa, ninguém está bêbado ainda, parece que não ficarão nesta noite, aí alguém, meio sem jeito, toca num assunto maior que qualquer clichê sobre trabalho, tempo e nostalgia juvenil. Relacionamentos. Minutos iniciais reservados à negação, relacionamentos aniquilam bons momentos da vida, não se pode pensar em paz, beber com os amigos, sair sem avisar, mudar de idéia sem ser questionado “Você não era assim antes...”. Quantos anos perdidos e pessoas e festas e sacadas geniais sobre a vida – tudo isso trocado pela necessidade sub-humana (sim, porque a humanidade pode mais!) de fazer alguém caber no ‘seu’ sonho até descobrir que “calma aí, de quem é esta merda de sonho?”
Mas alguém desliza melancolicamente o dedo indicador na borda do copo, olha para a espuma do chope, faz cara de quem se incomoda com alguma coisa escondida. De repente, todos se incomodam, querem falar, mastigam o passado, esperam que o futuro venha de alguma forma bem previsível para preencher determinadas expectativas. “Alguém para emprestar a escova de dente”, “Mas isso não é anti-higiênico?”, “Fazer e levar crianças para ouvir histórias na pracinha da Flip”, “Quem sabe passar o fim de semana em casa, ouvi dizer que isso é divertido a dois”, “Que pobreza imaginativa...” etc. Fase de maturação.
Há ainda quem cultue a negativa. Em rodas de amigos, são os sujeitos rapidamente catalogados como os adultos que não cresceram – típicos das séries americanas de televisão. Mas nem sempre o fundo disso tudo são risadinhas artificiais de um auditório invisível. Inábeis à intimidade humana ou inadaptados ao cativeiro de emoções fáceis? Alguns, talvez, sejam o que restou da raça de ultra-românticos. Uma horda de radicais do sentimento puro, capazes de negar simulacros made in China por aí. Apaixonar-se deveria ser, para eles, idéia tão obscura como a poeira cósmica que vaga pelo espaço. Se um dia esbarrar com ela, “Óhhhhhhh, poeira cósmica!”, o chão tremerá abaixo dos seus pés – isto é, se houver chão. Mas não se sabe, não se viu e nenhum registro dos sobreviventes é real o suficiente para se fiar. Os xiitas dos relacionamentos odeiam o déjà vu, a mínima possibilidade de reviver o que já foi vivido – por ele próprio ou por seus antecessores. Eles só querem mesmo saber até onde iriam com alguém – não importa se de Palio Weekend tamanho família ou carona na boléia de um caminhão.
02 November 2006
Mania de edição
Fosse o que fosse
Peste
Estresse
Foice
Estariam juntos
Durante solos de guitarra
Imaginária
Imaginando que (um dia)
Estaria ela odiando
O gerundismo
E a mania de edição
De ele dizer ‘Não!’
Emburrado
Feito burro
Amarrado
Balança a cabeça
Repetindo ‘Não!’
Negativa seca
Mastigada na boca
Misturada às mãos
Que queriam escrever
Mais
Começa de novo
Rasga o papel
Vamos fazer
E acontecer
No barulho
Dos solos de guitarra
Imaginária
P.S. Poema-protesto ao amigo (e editor-júnior) mais implicante impossível.
Peste
Estresse
Foice
Estariam juntos
Durante solos de guitarra
Imaginária
Imaginando que (um dia)
Estaria ela odiando
O gerundismo
E a mania de edição
De ele dizer ‘Não!’
Emburrado
Feito burro
Amarrado
Balança a cabeça
Repetindo ‘Não!’
Negativa seca
Mastigada na boca
Misturada às mãos
Que queriam escrever
Mais
Começa de novo
Rasga o papel
Vamos fazer
E acontecer
No barulho
Dos solos de guitarra
Imaginária
P.S. Poema-protesto ao amigo (e editor-júnior) mais implicante impossível.
01 November 2006
Volver a sentir profundo
Todos os meus pensamentos últimos não preenchem uma tela branca. Recordo as lições da prosa despretensiosa e da poesia neoconcreta que falava do armazém, da tia que tosse, da renda na mesa, das ‘pastilhas de aniversário domingos de futebol corso comícios roleta bilhar baralho’... E nada me vem. A praça deserta, a cerveja entornada, o cachorro de rua, a mais bela sinfonia assobiada por um passageiro de ônibus. Já não sinto, embolada que vivo em outras dimensões do pensamento. Há sensações que não se produzem ou reproduzem. Os moleques mergulhando no chafariz de água imunda da Praça Saens Peña, hoje ao meio-dia, eram uma possível notícia de jornal. E uma beleza a menos, já que a alegria alheia, vista, não era sentida. Com as mãos espalmadas feito remos, espirravam aquele lodo líquido um em cima do outro.
Uma pequena epifania de um dia qualquer, talvez. A possibilidade miúda de um sorriso esboçado gratuitamente. Como na tarde monótona em que ouvi “Volver a los 17”, na voz da peruana Violeta Parra. Tentei passar o milagre adiante como uma promessa de felicidade que se transmite em corrente. Confesso também que a primeira vez que recebi a letra não cheguei a ‘sentir profundo como un niño frente a Diós’. Desta vez, teria sido, quem sabe, a viola ao fundo, o sussurro quase em segredo, a crença compartilhada de que “solo el amor con su ciencia nos vuelve tan inocentes”. Toda a poesia que me faz viva neste instante (e naquele), reafirmada exclusivamente para mim através de um fone de ouvido, num ambiente tão distante da minha alma quanto perto do meu corpo. Era minha confissão mais verdadeira, em público sem ser pública, que me faria em um estalo mágico estar onde gostaria, da velha maneira como me conheço. Sem me mover da cadeira ou desligar o computador em que trabalhava.
‘Volver’, não à toa, me parece mais difícil do que seguir. Pedaços ficam pelo caminho, como aquele sorriso contido para os moleques do chafariz. Ou a confiança de que as pessoas são confiáveis. Algumas vezes me decepcionei com desconhecidos. Um trocador de ônibus se recusou a me dar o troco da nota de R$ 20 que tinha usado para pagar a passagem. A discussão se estendeu, expliquei que só tinha aquele dinheiro, que ele não poderia fingir que não havia recebido. No ponto final em Copacabana, longe do meu destino, sentei na calçada e chorei feito criança. Não podia conceber que alguém faria comigo o que eu não seria capaz contra os outros.
Desde sempre, acreditei que no dia em que não pudesse acreditar nas pessoas - fosse o trocador, o traficante, o frentista, o chefe no trabalho, o amigo mais fofoqueiro -, eu mesma estaria fracassada como projeto de gente. Sigo no mesmo ritual de chorar quando sou sacaneada, por mais irrelevante que seja o veneno destilado, a fofoca contada por descuido, a dívida não paga, o empurrão na confusão da entrada do metrô. Cada insignificância age como uma bomba contra minha fortaleza de ilusões sobre mim mesma – uma coletânea de genes, traços, idéias, vontades do resto da humanidade.
Uma pequena epifania de um dia qualquer, talvez. A possibilidade miúda de um sorriso esboçado gratuitamente. Como na tarde monótona em que ouvi “Volver a los 17”, na voz da peruana Violeta Parra. Tentei passar o milagre adiante como uma promessa de felicidade que se transmite em corrente. Confesso também que a primeira vez que recebi a letra não cheguei a ‘sentir profundo como un niño frente a Diós’. Desta vez, teria sido, quem sabe, a viola ao fundo, o sussurro quase em segredo, a crença compartilhada de que “solo el amor con su ciencia nos vuelve tan inocentes”. Toda a poesia que me faz viva neste instante (e naquele), reafirmada exclusivamente para mim através de um fone de ouvido, num ambiente tão distante da minha alma quanto perto do meu corpo. Era minha confissão mais verdadeira, em público sem ser pública, que me faria em um estalo mágico estar onde gostaria, da velha maneira como me conheço. Sem me mover da cadeira ou desligar o computador em que trabalhava.
‘Volver’, não à toa, me parece mais difícil do que seguir. Pedaços ficam pelo caminho, como aquele sorriso contido para os moleques do chafariz. Ou a confiança de que as pessoas são confiáveis. Algumas vezes me decepcionei com desconhecidos. Um trocador de ônibus se recusou a me dar o troco da nota de R$ 20 que tinha usado para pagar a passagem. A discussão se estendeu, expliquei que só tinha aquele dinheiro, que ele não poderia fingir que não havia recebido. No ponto final em Copacabana, longe do meu destino, sentei na calçada e chorei feito criança. Não podia conceber que alguém faria comigo o que eu não seria capaz contra os outros.
Desde sempre, acreditei que no dia em que não pudesse acreditar nas pessoas - fosse o trocador, o traficante, o frentista, o chefe no trabalho, o amigo mais fofoqueiro -, eu mesma estaria fracassada como projeto de gente. Sigo no mesmo ritual de chorar quando sou sacaneada, por mais irrelevante que seja o veneno destilado, a fofoca contada por descuido, a dívida não paga, o empurrão na confusão da entrada do metrô. Cada insignificância age como uma bomba contra minha fortaleza de ilusões sobre mim mesma – uma coletânea de genes, traços, idéias, vontades do resto da humanidade.
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