15 November 2006

Miguel não esquece um rosto

Jamais esquecia um rosto. Talvez o único traço que o lembrasse um mafioso, no restaurante de piso e paredes de madeira em que tomava uma sopa fumegante. Um homem com dentes escurecidos rompia o silêncio do ambiente com sapatos que faziam barulho. Miguel fez qualquer expressão de desdém, mantendo o tronco e o rosto tombados na direção da tigela. Pedaços de pão boiavam à sua frente, ele arrastava a colher rente às bordas, deixando que o líquido envolvesse e sugasse para o fundo a parte sólida do seu almoço. Era tímido ou entediado, ainda não havia decidido. Além disso, chovia lá fora, o que sempre respingava em seu humor. O velho insistia em estalar o assoalho com seus sapatos gastos-porém-engraxados. Aliás, a superfície faiscava e refletia as finas listras brancas do paletó negro. A gravata era vermelha e ele usava chapéu, que tirou ao chegar no balcão e pedir uma garrafa de vinho. Barato. Segurou pelo gargalo sua botella de vidro grosso e verde. As mãos frouxas deixavam a sensação de que tudo estava prestes a cair. Sentou e bebeu até que copo e garrafa começassem a ser estalar no encontro furtivo das doses idas e vindas. Estava numa mesa encostada à parede e, chapéu caído na testa, parecia fazer a sesta.

Miguel desistiu do trabalho, às vezes era contra o conceito, e inventou uma consulta dentária emergencial. A sopa tinha acabado e não restava dinheiro para outra coisa. Passou a tarde palitando os dentes e admirando a simetria dos seus dois pés acomodados em dois all-stars espantosamente idênticos. No fundo, sentia-se incomodado pela ausência de uma mulher corpulenta, decote indiscreto, batom vermelho e cabelos negros presos em um rodete quase como o de Evita. Ela deveria estar na mesa encostada na parede, onde agora se acomodava o velho. Seu nome talvez fosse Glória. Mas não estava ali para que pudesse perguntar e nem mesmo para reconhecer o seu rosto. Em outra ocasião, Glória estava sentada com uma postura cheia de orgulho, costas eretas, queixo levantado. Não tocava no copo de vinho. Mantinha os olhos muito negros espremidos e atentos numa direção fixa. A nuca do velho dos sapatos barulhentos. Ele vestia a mesma roupa, naquela vez. E estava de costas para a mulher. O chapéu fazia sombra no seu rosto. Dividida em quatro partes, a face só era iluminada no quadradinho inferior à esquerda pela claridade que vinha da janela.

Miguel não se lembra de nada que pudesse ter alterado esta cena. Os dois ficaram assim por muitos minutos. Quando o rapaz voltou, pouco tempo depois, homem e mulher ainda tinham as mesmas expressões, ocupavam o mesmo lugar no restaurante. O garoto estava inebriado pelo casal, dois amantes gastos como sapatos, cheios de tapas na cara e vociferações silenciosas. Pensou que, em algum momento, ela teria tramado trancá-lo em um quarto escuro para sempre e fazer visitas íntimas de vez em quando. Ele sabia disso e adorava a idéia, enquanto não se concretizasse, claro. Ficava exaustivamente animado com as pretensões ensandecidas da mulher. Queria colocá-la louca e rodopiar com ela num concurso de tango sem regras. Glória teria morrido? De droga, de raiva, de susto?

Miguel estava desapontado. Há cerca de um ano, conhecera os dois num retrato em preto-e-branco de um fotógrafo de rua na Feira de San Telmo. Segurou nas mãos, olhou bem, contou os trocados do bolso, só dariam para uma sopa. Sopa ou fotografia? Fazia frio naquela manhã e já era quase horário do almoço. Deu uma volta na praça e voltou à banca em que o casal permanecia imóvel. Passou os olhos pela última vez e foi atrás da sopa. Cedo ou tarde, reconheceria-os por aí.

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