01 November 2006

Volver a sentir profundo

Todos os meus pensamentos últimos não preenchem uma tela branca. Recordo as lições da prosa despretensiosa e da poesia neoconcreta que falava do armazém, da tia que tosse, da renda na mesa, das ‘pastilhas de aniversário domingos de futebol corso comícios roleta bilhar baralho’... E nada me vem. A praça deserta, a cerveja entornada, o cachorro de rua, a mais bela sinfonia assobiada por um passageiro de ônibus. Já não sinto, embolada que vivo em outras dimensões do pensamento. Há sensações que não se produzem ou reproduzem. Os moleques mergulhando no chafariz de água imunda da Praça Saens Peña, hoje ao meio-dia, eram uma possível notícia de jornal. E uma beleza a menos, já que a alegria alheia, vista, não era sentida. Com as mãos espalmadas feito remos, espirravam aquele lodo líquido um em cima do outro.

Uma pequena epifania de um dia qualquer, talvez. A possibilidade miúda de um sorriso esboçado gratuitamente. Como na tarde monótona em que ouvi “Volver a los 17”, na voz da peruana Violeta Parra. Tentei passar o milagre adiante como uma promessa de felicidade que se transmite em corrente. Confesso também que a primeira vez que recebi a letra não cheguei a ‘sentir profundo como un niño frente a Diós’. Desta vez, teria sido, quem sabe, a viola ao fundo, o sussurro quase em segredo, a crença compartilhada de que “solo el amor con su ciencia nos vuelve tan inocentes”. Toda a poesia que me faz viva neste instante (e naquele), reafirmada exclusivamente para mim através de um fone de ouvido, num ambiente tão distante da minha alma quanto perto do meu corpo. Era minha confissão mais verdadeira, em público sem ser pública, que me faria em um estalo mágico estar onde gostaria, da velha maneira como me conheço. Sem me mover da cadeira ou desligar o computador em que trabalhava.

‘Volver’, não à toa, me parece mais difícil do que seguir. Pedaços ficam pelo caminho, como aquele sorriso contido para os moleques do chafariz. Ou a confiança de que as pessoas são confiáveis. Algumas vezes me decepcionei com desconhecidos. Um trocador de ônibus se recusou a me dar o troco da nota de R$ 20 que tinha usado para pagar a passagem. A discussão se estendeu, expliquei que só tinha aquele dinheiro, que ele não poderia fingir que não havia recebido. No ponto final em Copacabana, longe do meu destino, sentei na calçada e chorei feito criança. Não podia conceber que alguém faria comigo o que eu não seria capaz contra os outros.

Desde sempre, acreditei que no dia em que não pudesse acreditar nas pessoas - fosse o trocador, o traficante, o frentista, o chefe no trabalho, o amigo mais fofoqueiro -, eu mesma estaria fracassada como projeto de gente. Sigo no mesmo ritual de chorar quando sou sacaneada, por mais irrelevante que seja o veneno destilado, a fofoca contada por descuido, a dívida não paga, o empurrão na confusão da entrada do metrô. Cada insignificância age como uma bomba contra minha fortaleza de ilusões sobre mim mesma – uma coletânea de genes, traços, idéias, vontades do resto da humanidade.

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