03 December 2008

Tanta vida explodida

Eu, que suporto com bravura as dores agudas, nada sei sobre os mistérios do claustro.

Nesses dias de ócio, acabei por associar, com nostalgia, fatos antigos e dispersos, que talvez me sejam peculiares. No primeiro dia de jardim de infância, com 3 anos, corri em disparada em direção à piscina da escola e pulei na água feito mártir. Estava de roupa e bati com o nariz (ou a boca) na borda. Criei um tumulto no lugar e fui entregue à minha mãe com algum sangramento na face. Apesar dos efeitos colaterais, terminei esse dia com saldo positivo, achando que a escola era pura aventura.

Essa cena se repetiu inúmeras vezes, em diversos lugares: de uniforme, de pijama, de vestido, correndo loucamente para pular n'água. Em tempos imemoriais, essa era a forma de me atirar na vida, de torná-la toda minha num instante, de compensar a inquietação. Sem planejamento ou autorização, eu me atirava no sonho mais escorregadio e irracional: a sensação vital da felicidade.

Felicidade que não está embutida no acúmulo de fatos corridos, mas que toma nossos corações e mentes numa explosão particular. Explodir é preciso. A primeira lei do universo, desde o Big Ben.

O que me leva a recorrer a FG:

Todos te buscam, facho
de vida, escuro e claro,
que é mais que a água na grama
que o banho no mar, que o beijo
na boca, mais
que a paixão na cama.
Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns
te acham e te perdem.
Outros te acham e não te reconhecem.
e há os que se perdem por te achar,
ó desatino
ó verdade, ó fome
de vida!


25 November 2008

A Crise

Crack da Down Jones.
Crack da Nasdaq.
Crack da Bovespa.
Crack do osso do meu pé.

Cotação de Carla Marques Ltda nesta segunda-feira: -2,0%.

* O BC poderia liberar uns dólares para acalmar meu mercado.

* Analistas chantageados por mim falam em tendência de alta.

* Acompanhem os próximos capítulos desta crise. Com lágrimas!

14 November 2008

Miudezas provisórias

Coisas miúdas
Que a gente pega com a mão

Onda do mar
Que te cobre toda

Mãe no aeroporto
Que espera sorridente

Feixe de sol de inverno
Que entra no quarto de manhã

Música clássica do vizinho
Que chega de surpresa

Cachoeira na cidade grande
Que te deixa resfriada (mas feliz)

Última página de livro bom
Que dá vertigem na rua

Crianças no deque da Lagoa
Que riem e tropeçam

Gente bizarra
Que comemora falta de luz
Que pula debaixo da chuva

05 November 2008

Tatuagem, borrão e sol

Voltei a sonhar com a tatuagem. Desta vez, era enorme e encobria meu ombro esquerdo. Inconformada, me perguntava como havia permitido que aquela imagem fosse tecida na minha pele. Não parecia mais que uma mancha, em que o tom vermelho se destacava dos outros. De alguma forma, porém, a tatuagem derreteu e já não estava mais no ombro. Na seqüência, minha boca aparecia envolta num borrão vermelho, como se meu batom tivesse se espalhado por seus cantos. De todos os pesadelos possíveis, por que a tatuagem? Acordada, vejo-as em toda parte e me pergunto o que há nelas que me aflige quando sonho. Tecer uma trama eterna, talvez. Mas o que é eterno, afinal? A dúvida que atravessa nossas noções de tempo e de espaço no mundo. Aqui estamos, até quando?

Fora isso, sinto cheiro do fim do ano quando o ar aquece em novembro. Sinto 2008 encerrado. E agora só quero um pouco de sol.

03 November 2008

Dentro da noite veloz

O que pensar quando se encontra uma folha solta com a seguinte inscrição a punho (meu próprio punho):

"HOMEM MORIBUNDO ESCREVE: Deixo meus bens à minha irmã não ao meu sobrinho jamais será paga a conta do alfaiate nada aos pobres."

.
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.

Encerro meu domingo considerando que a agonia do projeto da intelectualidade é a sua tendência ao infinito.

Irrealizado será. Como dois e dois são quatro.

.
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Como dois e dois são quatro
Sei que a vida vale a pena
Embora o pão seja caro
E a liberdade pequena

(FG, meu poeta mais querido)

15 October 2008

Cordão de rosas e espinhos

Já não posso encontrar no dicionário de sonhos da minha avó o significado de estar tatuada com desenhos discretos ou extravagantes. Se na infância eu via sempre meu pai ser atacado por gatos selvagens debaixo da chuva, hoje me vejo tatuada por um cordão de rosas e espinhos que envolve minha cintura.

Tento tirá-lo, mas não posso, porque atravessa minha pele, minhas células, minh'alma. Eu escolhi tê-lo sem escolhê-lo de verdade. Eu disse: Sim. Mas não quis dizer. Ando na noite escura buscando o significado daquela escolha, imaginando uma forma de estancar o sangue que escorre dos meus espinhos.

Na madrugada em que sonhei lavar roupas num campo de concentração, acordei com músculos doloridos e a sensação de que algo daria errado caso um Rolls-Royce preto passasse em alta velocidade. Outra vez, fui empurrada por uma avalanche de neve do pico de uma montanha até as águas quentes de uma praia, onde um francês me ofereceu um armário exclusivo para guardar meus casacos.

Sonhos são flechas que atravessam meus nódulos de dor, neurônios pirados, fantasmas e espectros, ímpetos de fuga, reservatórios de alegria... Apontando para a soma disso tudo, que eu não sei bem o que é.

09 October 2008

El triste 8 de octubre

"É difícil para alguém como Che Guevara movimentar-se bem nos corredores dos ministérios como o fazia pelas veredas de Sierra Maestra. Difícil a adaptação à nova fase, difícil aceitar com tranqüilidade a passagem do "grupo em fusão", quando guerrilheiros e sociedade confundem-se em um único desejo comum - viver sem grilhões, em paz e felicidade -, para o momento da institucionalização da revolução, quando se torna mais séria - mais amarga. Guevara parte para novas aventuras. Aventuras que reuniam as viagens de aprendizado político com aquelas da "formação do espírito" do "homem novo". (...)

Como Licurgo, o Che abdica do poder e a ele prefere continuar em sua atividade de preceptor, pedagogo e legislador (...). Em plena floresta boliviana (...), sentado no chão, um fuzil-metralhadora repousando a tiracolo, um homem barbudo estranho lê o Fausto do Goethe (...) imagem que dá bem a idéia de sua complexidade e sofisticação e que unifica todos os aspectos do guerreiro-legislador no sentido de Montesquieu e Rousseau: um condottieri-legislador ou, valendo-se de Rousseau, um guerrilheiro bom e virtuoso".

(Luiz Roberto Salinas Fortes. "Che, Vinte Anos Depois").

01 October 2008

Nosso próprio tempo


Eu, ele, a distância do resto, a proximidade de nós.

Eu amo de verdade.

16 September 2008

Balzac e a pequena farmacêutica

Ela é pequena. Tem 1,52m. Quando percebi pela primeira vez a diferença entre a sua altura e a dos demais mortais, perguntei sem delongas: "Mãe, você é anã?" Ela disse que era apenas pequena, assim como toda sua família, e que talvez eu ficasse também. Alcancei a inacreditável marca de (quase) 1,70m.

Além das notáveis diferenças físicas, somos água e vinho em outros aspectos da vida. O que ela tem de pragmática, eu tenho de idealista. Ela é fã dos números e eu, das letras. Quanto mais ela desconfia das pessoas, mais acredito nelas.

Minha mãe - que, como se sabe agora, é pequena, nunca anã, pragmática, numérica e desconfiada - ingressou recentemente num mundo perigoso. O meu mundo. Percebi que algo havia mudado na casa quando, ao entrar na cozinha, avistei três panelas borbulhando em cima do fogão e uma pessoa compenetrada na leitura... de Honoré de Balzac.

E mais: ela havia passado a contar a história em capítulos em plantões semanais no seu laboratório. A cada semana, oferecia um trecho da saga aos colegas de trabalho. Pragmaticamente, me explicou o que achava de A Mulher de Trinta Anos: "Acho engraçado tanto amor e dor".

Há alguns meses, minha mãe começou a me pedir livros. Desde então, passaram por suas mãos, além de Balzac, Ernest Hemingway, Gabriel García Márquez, Milan Kundera e José Saramago... No início, tentava instrui-la sobre a importância de cada autor e de cada livro.

Ela, porém, fazia sempre a leitura que bem entendia e me respondia coisas terríveis. O Velho e o Mar? "O velho é chato demais, merece morrer". O Amor nos Tempos do Cólera? "Florentino Ariza não ama aquela mulher, é um doente mental. Essa é a única explicação". Ensaio sobre a Cegueira? "Os cegos precisam se civilizar de novo. Não agüento tanta sujeira".

As constatações nuas e cruas geraram debates e brigas sob este teto. Aos poucos, as mudanças ficaram mais claras, com suas referências aos autores ou aos livros em conversas corriqueiras, seu interesse em decifrar o sentido de uma passagem e sua vontade ansiosa de comentar o final da história.

Sempre que restam poucas páginas até o fim, em tom de aviso, ela fala para sua bibliotecária-filha: "Está acabando, qual será o próximo?" Por hora, ela ganhou dois: Todos os Nomes, Saramago, e O Estrangeiro, Camus.

Dos personagens cegos que ela mencionou nos últimos dias, perguntou, achando graça, se eu lembrava da "mulher que disse aonde tu fores, eu irei". Sim, eu me lembro, essa sou eu, mãe.

10 September 2008

Silêncios de resistência

- Qual o papel do escritor brasileiro hoje em dia? - pergunta o entrevistador de TV cheio de entonações.

- O de falar o menos possível - responde Clarice Lispector, num dia que julgou estar cansada, mas negou ser infeliz e solitária, no longíquo ano de 1977.

http://www.youtube.com/watch?v=9ad7b6kqyok
http://www.youtube.com/watch?v=TvLrJMGlnF4&feature=related
...
(Tenham paciência com o apresentador animadinho)

30 August 2008

Trechos, torres e lugares no mundo

Dia chuvoso de leituras (anti-) psicanalíticas e (anti-) existencialistas, que me trazem a certeza da superação de determinadas indefinições (em outras palavras, a certeza do "a que vim fazer neste mundo"). Rômulo conhece os prenúncios da pergunta recorrente - "Posso ler um trecho para você?" - e parece se arrumar para ouvi-lo. É certo que me acusa de distraída, por perder o fio da atenção quando ele me oferece "um trecho". É certo também que as idéias entram em mim de maneira menos organizada do que nele. De qualquer forma, enquanto as idéias voam desvariadas por todos os lados, olhamos para o mesmo céu, nos reconhecemos nele, nos reconhecemos em nós dois.

Cada vez mais percebo ser difícil o debate público (e acho um momento heróico dos homens públicos sinceros e complexos). No meu caso, debate público se refere a uma arena bem restrita, quase privada a amigos, conhecidos e semi-desconhecidos. O obstáculo está no começo de todas as discussões, que jamais é realmente um "começo", pois as pessoas já trazem em si uma bagagem de pressupostos e concepções (refletidos, irrefletidos, folclóricos, de senso comum etc). A sensação Torre de Babel me persegue.

Acho que a explicação do problema pode ser a seguinte: Um saber é realmente adquirido apenas quando o processo de aprendizado se apaga da memória. O encadeamento de regras, argumentos e pressupostos - tão necessário e claro numa fase - passa a ser internalizado no fim do ciclo: o indivíduo simplesmente "sabe". Como andar de bicicleta, falar uma língua ou ter uma visão de mundo.

Uma simples idéia, portanto, significa um longo processo de escolhas conscientes e inconscientes. Nunca pode ser resumida a uma tomada de posição imediata num debate. Para que um debatedor pudesse realmente convencer o outro, teria que voltar muito atrás no seu processo de aprendizado (já internalizado) e mostrar ao concorrente as suas razões mais profundas.

Algumas poucas pessoas, entretanto, nos surpreendem por terem uma consciência nata dessas nossas razões mais profundas. São com as quais nos comunicamos sem palavras. Mesmo que nem sempre concordem com a superfície dos nossos argumentos imediatos. Antes de tudo, são um contraponto à Torre de Babel na qual nos metemos ao nascer. São, talvez, nosso verdadeiro lugar no mundo.

05 August 2008

Porque Marx não serve para nada

Rômulo chegou esbaforido de uma incursão na graduação. A disciplina era História do Pensamento Econômico II, cuja ementa prevê a leitura do livro I de O Capital. Difícil ter estômago para graduação, sobretudo porque 99% das pessoas que nela estão foram levadas compulsoriamente até lá, com a missão básica de conseguir um diploma qualquer que lhes garanta um emprego burocrático e uma dignidade mínima na sociedade contemporânea. Universidade é um nome que perdeu o sentido: longe de parecer um universo - infinito, complexo e revelador -, mais parece, tantas vezes, a sala de espera do dentista, em que criaturas distraídas folheiam revistas sem menor critério. Quantas pessoas conseguiram se formar, em instituições públicas ou privadas, sem terem lido sequer um livro inteiro?

Mas voltando ao caso de hoje. Rômulo me conta que o professor era um homem de 60 e poucos anos, sisudo mas afável. Ele pergunta se alguém na turma já havia tido contato com a obra de Marx. Um garoto se adianta: "Odeio Marx. Ele não serve para nada". O professor argumenta: "Mas você já leu alguma coisa do autor?". Não havia lido. A Economia é povoada pelo que gostamos de chamar de "ogros matemáticos". É o tipo de cara que exercita bastante os músculos e promete que fará seu primeiro milhão aos 20 e poucos. Acredita ter sido tocado pelo dom da inteligência, pois consegue resolver equações matemáticas e sofre de pró-atividade mercadológica.

O professor parece estar psicologicamente preparado para lidar com essa gente "do futuro". Rômulo faz uma referência ao nome do filme dos irmãos Cohen: "No country for old men". Filme ruim, título ilustrativo. O veterano continua: "Por muitos anos, tentei explicar por que Marx não serve para nada. Agora já tenho uma resposta".

Numa tribo sem História ou, melhor seria dizer, numa sociedade em que as organizações e relações sociais se mantêm inalteradas ao longo dos anos, tanto faz observá-la hoje ou dois séculos atrás. Ela se converva igual, pois todos indivíduos, em todas as gerações, se inserem naturalmente no grupo. Não existem margens que se multiplicam. Nessa sociedade, Marx é completamente inútil.

Muitos estão convencidos que vivemos numa sociedade sem História, que desigualdades e opressões de várias espécies não têm origem no tempo histórico. Tantos jovens assimilaram que o mundo tal como vemos hoje sempre existiu e sempre existirá, equiparando-o a uma tribo de equilíbrio perfeito, em que mesmo as características ruins têm sua razão de ser - ou, como se diz hoje, a existência miserável de 2/3 de pessoas no planeta é a condição básica para que a última parte viva bem.

Nesse "equilíbrio perfeito", cada um se vê "livre" (no sentido mais escroto da palavra) para cultivar seu intimismo à sombra do poder, para fazer um milhão de reais, para consentir um projeto que mutila em massa carne e alma humanas... Afinal, a História não existe mesmo e as pessoas são responsáveis apenas pelo curto espaço de tempo em que respiram e consomem.


(Para Rômulo, como tudo que escrevo e penso).

25 July 2008

Em busca da finalidade perdida

Catarina saiu pelas ruas com seu vestido florido, atravessando vendavais de esquina, tempestades de quarteirão, praças desertas e becos lotados. Marchou, furiosamente, por uma hora e quarenta e três minutos até se lembrar o motivo pelo qual havia saído. E percebeu, pela primeira vez, que não poderia mais voltar.

Então, caminhou por mais uma hora, até estar bastante distante, e concluiu que deveria abandonar a cidade. Diante dos muros baixos de uma casa cor de tijolo, decidiu que teria 15 dias para cruzar a fronteira. 'Um dia para me despedir de cada ano que vivi aqui'. Tratou de excluir os três primeiros anos, que sua memória não alcançava, e alguns outros que julgava terem sido desprezíveis.

Havia superado Almodóvar, Bertolucci ainda não, os beatniks, a vodka, as solas dos pés com cacos de vidro, a disposição aos acasos, as festas que podem desabar, os jornais, sobretudo os jornais e as revistas, os refrigerantes nojentos, eca!, os papos de drogado acomodado, os planos eternos (ou eternamente irrealizáveis), a histeria de 'não amar, não amar, não amar...' (Ó, que sofrimento!). No auge de uma corrida desatinada, percebeu que alguém deveria ter mexido naquela faixa amarela com a inscrição "Fim". Tentou pedir informação: Onde vai, onde vamos? Mas, acredite você, todos estavam se debatendo sozinhos como aquelas moléculas acaloradas das aulas de química. Que cena estranha. "Alguém está bagunçando com a gente, pessoal!", ela gritou. Não era para ser assim. "Desliga o maçarico, está todo mundo ficando doido".

Pelo menos, a epifania teve trilha sonora do Beethoven e luz celestial. Mentira. Foi assim: ela ficou puta da vida e leu na placa cinza Bem-vindo ao deserto do real.

E Catarina é uma radicalzinha. "Sou meeeesmo", ela repete sozinha ao ouvir a narrativa em off de sua própria vida. Disse para o diretor: "Corta tudo. Pode cortar tudo. Corta álcool, corta crise, corta esse bando de figurante, corta o espetáculo adolescente-burguês. Isso é palhaçada, ouviu?". Então, o diretor, um tipo introvertido e pacífico, cortou. Ainda se ouviu, vindo do fundo, um princípio de vaia. Mas o fundo nunca importa. Catarina representa só para a primeira fileira.

17 July 2008

Passagem das horas

Trago dentro do meu coração,
Como num cofre
Que não se pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi
Através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto,
É pouco para o que eu quero.
(FP)

02 July 2008

O mistério das pombinhas

No outro dia, estava prestes a dormir quando uma revelação me tirou da cama. Eu havia decifrado o mistério das palomitas de maíz! Conheço a tradução há cerca de dez anos: pipocas. Mas só depois de tanto tempo entendi que os grãos de milho estourados assumem o aspecto de pombinhas. É um gênio quem inventou essa expressão. Nunca mais voltarei a comer pipocas sem lembrar que são, na verdade, pombinhas de milho.

26 June 2008

Confesso que vivi

Uma anedota sobre o ano em que Pablo Neruda ganhou o Nobel da Literatura (em Confesso que Vivi):

"Entre as inúmeras cartas chegou uma curiosa e um tanto ameaçadora. Escrevia-a um senhor da Holanda, um homem corpulento e de raça negra, segundo podia ser observado no recorte de jornal que anexava. 'Represento', dizia aproximadamente a carta, 'o movimento anticolonialista de Georgetown, Guiana Holandesa. Pedi um convite para assistir à cerimônia que será realizada em Estocolmo para lhe entregar o prêmio Nobel. Na embaixada sueca me informaram que é preciso um fraque, uma exigência da rigorosa etiqueta para esta ocasião. Não tenho dinheiro para comprar um fraque e jamais colocarei um alugado, posto que seria humilhante para um americano livre vestir uma roupa usada. Por isso lhe anuncio que, com o escasso dinheiro que possa reunir, irei a Estocolmo para dar uma entrevista à imprensa e denunciar o caráter imperialista e antipopular dessa cerimônia, assim que seja celebrada a homenagem ao mais antiimperialista e mais popular dos poetas universais".

27 May 2008

Hordas de palavras bárbaras

Hordas de palavras bárbaras que se empurram em desfiladeiros derrapantes numa espécie de Serra Pelada em convulsão, prestes a explodir como um vulcão ao contrário, cuspindo todas as palavras que não formaram frases, que serviram a nada. E eu, às suas bordas, como um pescador pobre esticando minha varinha de bambu para capturar algum sentido.

17 May 2008

Hordas de bárbaros

Hordas de bárbaros habitam minha mente.
Preciso me organizar.
FN

14 May 2008

A Marcha de Catarina

Catarina saiu pelas ruas com seu vestido florido, atravessando vendavais de esquina, tempestades de quarteirão, praças desertas e becos lotados. Marchou, furiosamente, por uma hora e quarenta e três minutos até se lembrar o motivo pelo qual havia saído. E percebeu, pela primeira vez, que não poderia mais voltar.

Então, caminhou por mais uma hora, até estar bastante distante, e concluiu que deveria abandonar a cidade. Diante dos muros baixos de uma casa cor de tijolo, decidiu que teria 15 dias para cruzar a fronteira. 'Um dia para me despedir de cada ano que vivi aqui'. Tratou de excluir os três primeiros anos, que sua memória não alcançava, e alguns outros que julgava terem sido desprezíveis.

11 May 2008

Em modo terceira pessoa

"Eu tinha um comportamento distanciado, talvez pela minha experiência de vida; estava nos lugares, mas ao mesmo tempo estava na 'terceira pessoa'. Mantinha um olhar de fora e comecei a achar que isso era cinema". MG

Achei sympa.

04 May 2008

Insultos do destino

"Escravo do temperamento como das circunstâncias, insultado pela indiferença dos Homens como pela sua afeição a quem supõem que sou... Os insultos humanos do Destino". FP

O estrangeirismo do meu eu

Porque tudo que não é escola, letras e um-mundo-melhor, não sou eu.

Que não é chuva de verão nem sol de inverno, não sou eu.

Que não é soluço de horror ou canto de mágoa, não sou eu.


Que não é quietude do que voa, não sou eu.

Que não é gentileza desmedida, não sou eu.


Que não são carinhos e fúrias de colecionador, não sou eu.

Que não são desfechos espetaculares para histórias sem começo, não sou eu.


Portanto e para tanto, sou eu estrangeira em minha terra, no meio de minha gente, estrangeira assim. Sinto-me estranha na forçosa convivência diária. Preciso voltar à casa onde habita meu eu e outros poucos. Para ser feliz.

24 April 2008

Depois do P.S.

Não dá para ter uma teoria totalizante. Só conseguimos embarcar no Trem Regional (que alguns chamam "da Morte") porque uma senhorinha de La Paz nos ajudou.

Além disso, ainda existe um regime comunal nos pueblos do Altiplano, com trocas diretas e trabalho comunitário.

A solidariedade e a mesquinhez não são regras. Mas a solidariedade deveria ser.

O Post-Scriptum sobre a Bolívia tinha caráter mais de observação do que de teoria. Experiências isoladas, de solidariedade ou de mesquinhez, não dão conta de explicar a sociedade boliviana (nem qualquer outra). Mas algumas pessoas bem-intencionadas viajam para lugares pobres em busca do primitivo, do ser humano pré-capitalista, do bom selvagem, do "os pobres também são felizes", da pureza perdida das grandes metrópoles. E isso pode gerar um conforto traiçoeiro: ao fantasiarmos o Outro, nos distanciamos da realidade que buscávamos compreender, nos alienamos cheios de boas intenções.

Muitos tentam se agarrar à América Latina por fiapos de Macondo, com olhos realistas-mágicos. Isso pode ser solução ou problema. Pode gerar uma unidade necessária para o imaginário comum. Ou retóricas vazias e anacrônicas.

21 April 2008

Post-Scriptum sobre a Bolívia

A Bolívia me impressionou pelo seu potencial revolucionário (a sensação latente que a insurgência está por um fio de se realizar) e, paradoxalmente, pela crônica falta de solidariedade do povo. Não era raro perceber situações em que um boliviano tentava passar a perna nos demais, como por exemplo aumentando drasticamente o preço combinado da passagem quando o veículo estava na metade de sua rota. Quando se tratava de estrangeiros, a situação apenas piorava. Todo banheiro público era pago: mesmo que existisse uma placa dizendo "Gratuito", haveria de existir também duas ou três criancinhas cobrando o uso de latrinas pavorosas. Num pueblo, uma argentina pediu um copo de água da torneira para ferver e usar no seu chimarrão. A dona do restaurante quis cobrá-la um ou dois bolivianos. A argentina protestou, alegando que em seu país a água era dada como cortesia. O que surpreende é que, sendo um boliviano morto de sede, a cobrança se daria da mesma forma. Um ônibus cheio de crianças e velhos quebrou, pela quinta vez, no meio de uma estrada lamacenta. Um caminhão parou em seguida e os passageiros trataram de subir na caçamba precária. O caminhoneiro cobrou três bolivianos por pessoa, incluindo crianças famintas e sujas. A brutalização dos seres humanos na Bolívia é um processo de vários séculos. A pergunta que me resta é: alguma Revolução se sustenta sem qualquer noção de solidariedade? Eles lutam entre si pela lavagem dos porcos, usando muitas vezes artifícios dos mais baixos. Mudar apenas a ordem econômica resolve uma herança cultural tão famigerada, medonha, triste? Motoristas de táxi e pessoas comuns costumavam carregar debaixo do braço para todo canto rolos de papel higiênico (prova de que ninguém estaria disposto a oferecer artigo algum que não fosse pago). Argentinos, chilenos, uruguaios e brasileiros chocavam-se com tamanhas demonstrações de mesquinhez, como se seus próprios países não fossem também mesquinhos: o fato assombroso é que a experiência boliviana faz o Brasil, a Argentina e o Chile parecerem generosos. E nada soa mais estranho do que isso.

Essas são questões pendentes para mim.

27 March 2008

Nada se ilumina

Queria saber explicar como as coisas acontecem na cabeça da gente. Em que momento algo abstrato se torna compreensível (mesmo que ainda abstrato). Gaguejo, gaaaa-gue-jo, ao tentar explicá-lo. Para isso, tenho que voltar a coisas muito anteriores... Que também se perderiam de mim em ramificações infinitas. Preciso de tempo. Deixe que me cale, se não pode entender. Ou deixe-me falar, se quer ver os caminhos do meu pensamento. O fato é que nenhum pensamento meu é de alguma forma acabado. Só posso falar de caminhos, de ramificações, de possibilidades. Só posso falar do que não sei ou da minha luta interna contra a ignorância, a escuridão. Tenho em mim feixes de luz - às vezes fracos, às vezes rápidos e intensos - com vida própria. Há momentos em que simplesmente eles não se acendem, por causa ou conseqüência de devaneios outros.

Na semana de 22 a 30 de março, não estive/ estou iluminada.

10 March 2008

Rrrratatatá!

Falha a fala. Fala a bala.
Falha a fala. Fala a bala.
Falha a fala. Fala a bala.
Falha a fala. Fala a bala.
Falha a fala. Fala a bala.
Falha a fala. Fala a bala.
Falha a fala. Fala a bala.
Falha a fala. Fala a bala.
Falha a fala. Fala a bala.
Falha a fala. Fala a bala.

27 February 2008

La Paz

Achei agora um e-mail em que Rômulo tentava descrever La Paz. Terminava assim:

"Parafraseando Borges:

Quando cheguei à La Paz, pensei: esta ciudad és obra de dioses. Passeando pelas suas ruas, acrescentei: los dioses que la han construido están muertos. Ao deixar a cidade, defini: los dioses que la han construido eran locos".

23 February 2008

'Para não dizer que só sei ser contundente'

Morena, morena
Por você me desespero
Cedo, tarde ou tarde da noite
Você junta tudo que eu quero

Aleph do bem
Você é tudo que há de bom nesse mundo
Suco de manga
Fernando Pessoa
Vestido florido de chita (Deus está na barra desse vestido)
Encontros na biblioteca
Evo, Machu Picchu, Equador
Morena doce como a flor

Bola de fogo do meu amor
Morena como o Brasil
A Tijuca e a América Latina

Morena no corpo
no jeito
no cheiro
no gosto
no verso
reverso
no choro
no amor

Morena mais linda
Te amo sem ter jeito
Você entrou para não sair
Do fundo do meu peito

Morena, morena
Você é branco, é preto, é índio
E eu sou mameluco
Mameluco por você.


(Do meu moreno, com esse títutlo rabugento mesmo)

20 February 2008

Ándate por los Andes

Revoadas de borboletas
Brigas de touros
Palafitas
Cabanas de argila e palha
Os trens
As pessoas nos trens
O amanhecer no Altiplano
As mulheres que correm sem destino
E os que defecam acocorados em público

O soroche
Os tshaskis
Os tambos
Os pucaras
As panacas
O Tawantisuyu
E as guacas

As colinas
Com carneiros
Burricos
Crianças
Plantações de flores
São tão difíceis de descer

Noites estreladas do deserto
Lagoas que espelham o céu
Pueblos perdidos na poeira
Cósmica?

Pablo Neruda na parede
Falando das minas de Chuquicamata
E como a gente se sente ao chegar
Nos Andes

Um índio grande e gordo chamado Jesús ouvia uma música que diz:

Andes lo que andes, ándate por los Andes.

Os chilenos rasgam sacos de trigo
Dos peruanos, dos bolivianos
Que são pobres e escuros
E falam línguas que não podem escrever

A única coisa que separa ainda
Chilenos e bolivianos
É uma faixa de terra
Uma fronteira
Na cabeceira
Da Bolívia que não dorme

Nem descansa
Do trabalho nas minas
Das minas terrestres
Que ainda dividem
Bolivianos e chilenos

Nós que somos brasileiros
E nada temos com isso
Andamos pelos Andes
A repetir:

Hasta la Bolívia, siempre.

07 January 2008

A Morte e a Donzela

Aqui jaz tanta coisa que nem sei ainda bem dizer o quê. Pois faltam quatro dias. Quatro. Apenas quatro.




P.S. Trabalhando, minha gente, trabalhando!