27 December 2007

Nasce morrendo

No dia em que conheci Gervásio, o caminhoneiro aposentado de 12 dedos, duas pessoas que não se conhecem me disseram, em contextos diferentes, a mesma frase: "A gente já nasce morrendo". Sexta-feira de acontecimentos bizarros. Pensei nisso no ponto de ônibus da Praça da Cruz Vermelha (que o Alvinho um dia definiu como "linda, pois é redonda"). Olhei o prédio do Inca, os muitos buracos do asfalto e a praça (um velhinho de mais de 80 anos foi preso uma vez ali, onde vendia cocaína. Ele era manco e carregava as drogas numa sacola). O ponto de ônibus fica abrigado debaixo de uma marquise improvisada com pedaços de madeira. Está prestes a cair há pelo menos um ano. Muitas crianças de chapéu esperam seu ônibus ali. Elas têm câncer.

* * * * * * * * * *

Faltam quatro dias para o fim do ano e não sinto que tenha tanto a dizer. Charles Chaplin, que morreu no Natal de 1977, fazia cinema-mudo porque as palavras pareciam "fúteis, imprecisas". Gostaria também de fazer jornalismo-mudo, dedicatórias-mudas em livros, declarações-mudas de amor, desejos-mudos de feliz ano novo.

Sem mais.

22 December 2007

21 December 2007

Gervásio

Acordo poucas horas depois de dormir. A semana foi cruel. Melhor, o ano. Na noite anterior, havia recebido uma ligação urgente da redação e uma ordem ingrata: que chegasse às 6h30 no dia seguinte para tomar café-da-manhã com o governador num bandejão popular na Central do Brasil. Chovia. Tinha sono. Todas as roupas me pareciam armaduras de tão pesadas e incômodas. Maldisse o momento em que escolhi a profissão. Falei disso na breve caminhada que fiz com Rômulo, de sua casa ao ponto-de-ônibus. A partir dali, ficaríamos mais 10 dias sem nos ver. Ele estaria em Fortaleza. Quando vi sua imagem desaparecendo, percebi que burrice era tocar nesse assunto naquele momento. Estava com saudade.

Chego na redação. Vazia. Espero algum tempo até o fotógrafo aparecer. Desembarcamos do carro na Central: tudo em volta é abandono e miséria. Um homem que passa por nós fala sozinho: "Jesus Cristo nunca passou por aqui". Até os cachorros são mais deprimentes, arrastam-se e resmungam. Velhinhos raquíticos e doentes se acomodam por horas em cadeiras plásticas à espera do almoço. Chega o governador, secretários, deputados e a claque. O evento todo dura menos de 20 minutos. Todos se recusam a comer o lanche servido dentro de sacos plásticos. E saem porta afora.

Eu deveria ter entrado no trem que o governador viajaria até São Cristóvão. Perdi a saída quando me distraí com uns velhinhos que denunciavam que ele não havia tocado na comida. Tentaram lhe entregar a trouxinha, alertaram funcionários. Por fim, repartiram entre si mais uma ração alimentar. Em segundos, havia me integrado ao grupo. Já sabia que uma senhora de 78 anos, moradora de Irajá, acordava às 4h todos os dias, há sete anos, para almoçar por R$ 1 no bandejão. Com a freqüência, fez os amigos que não tinha na vida (o marido morreu há 18 anos e a deixou sem filhos). Havia até uma espécie de líder comunitário do restaurante popular, que pleiteava para si o dever de brigar por causas comuns, como a manutenção do bebedouro.

Um negro alto de 74 anos, com aparência de 50, filho de angolanos, nascido com 12 dedos (assim como os filhos), todos os dentes originais, viúvo, morador da Cidade de Deus, caminhoneiro aposentado, compositor de sambas, rei dos malandros. Gervásio é uma fábrica de frases de impacto.

- Meu antigo celular está com a desdentada.

- Que desdentada?

- Se não colocar um vulgo na nega, ela não atende. Branquinha assim como você fica toda-toda de ser chamada de crioula. Nem que seja por um verão.


Se tem algo que não aprecia na vida é mulher com pé rachado e cheiro de arroz queimado. Gervásio melhorou meu dia. E até me fez escrever de novo.


[Por curto tempo. Agora volto à matéria do governador.]

17 December 2007

Caravana




Corra, não pare, não pense demais, repare essas velas no cais, que a vida é cigana, é caravana.


FALTAM: 24 DIAS.

10 December 2007

Melhor da semana

Não-poema pessoal e intransferível

1.
Nem todo mundo
dá num poema
meu
ou de qualquer outra pessoa.

2.
Ele - o poema -
salta, corre, dança
tentando te ser,
mas não alcança:
me foge.

Ele - não este -
pensa, fabula, conspira
e, tentando te ser,
irrompe em fala.
Mas fala pouco,
fala sem ênfase:
e não te serve.

3.
Aqui, a busca pára
e o poema não aparece.
Entrego: não tenho a técnica para fazê-lo.
Mas sei bem
que ele existe, mesmo
sem ser encontrado,
anti-estético, em mim.

4.
Então, este - o não-poema - se faz
no inconcluso.
Se faz pouco,
e tampouco te diz ou te digniza,
mas, teu,
é o que pude
com tempo estreito
e largo carinho,
Lia.


P.S. O poeta do meu tempo: Rodolfo Gomes.
Visitem em http://e-musicafalada.blogspot.com/

02 November 2007

Torna-te quem tu és

A caretice me comove. Como me comovem o sol e a chuva na rua, e todas as pessoas que nela trabalham. E alternam capas plásticas, guarda-chuvas, galochas, mãos em forma de abano, mãos em forma de sombrero na testa. Comovem os mosquitos que perseguem e lastimam minhas pernas. Estas, como todo o corpo, resistem. No pasarán. Os olhos ignoram as picadas que formam pequeninos pontos de sangue coagulado. As mãos, quando não são abanos ou sombreros, tratam de coçá-las, às vezes discretamente, às vezes como quem tira diamente da pedra. Me comovem todos os reflexos de olheiras, de despenteios, de desarranjos visuais. E o corpo a se arrastar de bairro a bairro, de enchete a queimada, de linguajar callejero a lições de francês. Me comovem todas as contradições e ironias da rotina. A comoção anestesia e vicia, mas não entorpece. Por entre os fiapos da lucidez, lá vejo o mundo como é. Trágico e cômico como sempre foi. E eu, de comicidade insultante, de tempestades risíveis... Eu me comovo por ter escolhido estar aqui.

28 October 2007

Nomes de favela




O galo já não canta mais no Cantagalo
A água já não corre mais na Cachoeirinha
Menino não pega mais manga na Mangueira
E agora que cidade grande é a Rocinha!

Ninguém faz mais jura de amor no Juramento
Ninguém vai-se embora do Morro do Adeus
Prazer se acabou lá no Morro dos Prazeres
E a vida é um inferno na Cidade de Deus

Não sou do tempo das armas
Por isso ainda prefiro
Ouvir um verso de samba
Do que escutar som de tiro

Pela poesia dos nomes de favela
A vida por lá já foi mais bela
Já foi bem melhor de se morar
Mas hoje essa mesma poesia pede ajuda
Ou lá na favela a vida muda
Ou todos os nomes vão mudar

.
.

Nomes de favela, Paulo César Pinheiro.
Foto do Severino Silva, mestre dos mestres, companheiro de trabalho.

29 September 2007

Surrealismo é...

"... a surpresa mágica de encontrar um leão num guarda-roupas, onde tínhamos a certeza que encontraríamos camisas".

Frida Kahlo (Quem é vivo sempre aparece. Em lembranças)

15 September 2007

Meus personagens não têm certezas

Pós-modernismo (verbete): experiências e imagens chãs, unidimensionais, desconexas e fragmentadas, porém entremeadas por momentos de intensidade eufórica.

.
.

'A juventude está perdida e, como fica claro, tem uma vida completamente desfragmentada e desconexa, passando de uma atividade à outra em meio a mediações em grande parte casuais. Ninguém parece ter planos ou projetos de longo prazo, e todos dão a impressão de só viverem o momento, vagando pela vida como num sonho sem sonhador.

No entanto, as personagens vão passando pela cena, e, à medida que algumas delas saem e outra entram, temos a percepção de uma espécie de comunidade slacker cujos integrantes estão interligados, ainda que de maneira efêmera e mínima. Contudo, a comunidade é constituída por vagabundos nômades, vínculos acidentais, vaivéns não estruturados e por uma visão segundo a qual a vida é constituída por momentos desconexos de intensidade eufórica, intercalados por períodos de banalidade e falta de sentido'.

13 September 2007

O físico mais legal do universo

Amor
pode ser apenas uma palavra, e foi
mas por incerteza semântica
e medo de força desconhecida
foi menos que palavra
foi palavra nem dita

mas agora de repente se faz, e é
pela certeza do des-significado
e por ser força infinita
é mais que uma palavra
é uma poesia

(Diogo Fransozi)

Como eu ia dizendo, o físico mais legal do universo é meu amigo. E escreve boas poesias. Feliz aniversário!

10 September 2007

À minha mãe

Você é mais bonita que uma bola prateada
de papel de cigarro
Você é mais bonita que uma poça dágua
límpida
num lugar escondido
Você é mais bonita que uma zebra
que um filhote de onça
que um Boeing 707 em pleno ar
Você é mais bonita que um jardim florido
em frente ao mar em Ipanema
Você é mais bonita que uma refinaria da Petrobrás
de noite
mais bonita que Ursula Andress
que o Palácio da Alvorada
mais bonita que a alvorada
que o mar azul-safira
da República Dominicana

Olha,
você é tão bonita quanto o Rio de Janeiro
em maio
e quase tão bonita
quanto a Revolução Cubana

(Do Ferreira Gullar)

09 September 2007

A vida bate (na cara)

AS FLORES TÊM O PERFUME QUE A TERRA LHES DÁ SEM SER PERFUMADA. ASSIM, TAMBÉM NÓS DEVEMOS DAR A NOSSOS ATOS AQUILO QUE NÃO TRAZEMOS EM NÓS, MAS DE QUE SOMOS REALMENTE CAPAZES, E QUE NÃO MORRERÁ COM NOSSA MORTE.

CAMPOS DE CARVALHO

.
.

Achei na minha caixa de pensamentos.

.
.

OUVINDO: Tempos idos, Cartola.

08 September 2007

Voar

Eu sou a quietude do que voa.

Embora faça tanto barulho ao bater asas.

Eu e eu mesma nos encontramos, nos redimimos, nos perdoamos - quando voamos.

05 September 2007

Their finest art


The Genius of the Crowd
(Charles Bukowski)

there is enough treachery, hatred violence absurdity in the average
human being to supply any given army on any given day

and the best at murder are those who preach against it
and the best at hate are those who preach love
and the best at war finally are those who preach peace

those who preach god, need god
those who preach peace do not have peace
those who preach peace do not have love

beware the preachers
beware the knowers
beware those who are always reading books
beware those who either detest poverty
or are proud of it

beware those quick to praise
for they need praise in return

beware those who are quick to censor
they are afraid of what they do not know

beware those who seek constant crowds for
they are nothing alone



beware the average man the average woman
beware their love, their love is average
seeks average

but there is genius in their hatred
there is enough genius in their hatred to kill you
to kill anybody

not wanting solitude
not understanding solitude
they will attempt to destroy anything
that differs from their own

not being able to create art
they will not understand art
they will consider their failure as creators
only as a failure of the world

not being able to love fully
they will believe your love incomplete
and then they will hate you
and their hatred will be perfect

like a shining diamond
like a knife
like a mountain
like a tiger
like hemlock

their finest art

Estilingue e diário




A mãe lhe dizia para não mexer na sacola. O moleque continuou até achar um toco de quiabo. Ajeitou o legume num estilingue de galhos e acertou a nuca do pai que dirigia. O carro comeu a linha divisória da pista. O pai reclamou muito. A mãe, no banco de carona, esticou-se para apreender a arma. A garotinha que escrevia num diário, silenciosa, tateou no peito uma chavinha que pendia de cordão dourado. Fechou o cadeado do diário. Deu um soco no irmão... e um suspiro. Como se não fosse nada, voltou a abrir a tranca, sentiu o perfume das páginas e concentrou-se em escrever. A mãe protestou, histérica. Disse à pequena escritora que, da próxima, apanharia por bater no irmão. Cinco minutos depois, o mesmo copinho plástico de garrafa térmica passava de mão em mão. Beberam suco de goiaba.

17 August 2007

A grandeza argentina

Dei "Ficções", do Borges, para um amigo em seu aniversário. Nesta semana, ele me disse "A verdade? Não gostei. Pareceu arrogante". Respondi "A verdade? Eu sabia que não gostaria quando comprei o livro".

Este é o problema fundamental em dar presentes: saber se devemos dar o que a pessoa vai gostar ou se devemos abrir uma janelinha na vida dela, para que veja algo que não veria sozinha. É como tirar algo da invisibilidade e fazê-lo existir no mundo de outra pessoa. Prefiro sempre esta opção.

E-MAIL PARA O AMIGO

Achei uma entrevista do Cortázar em que ele fala sobre escrever bem e escrever de verdade. Claro que, para mim, Borges escreve inacreditavelmente das duas maneiras. Mas compreendo quando as pessoas não se sentem tocadas mesmo com tal nível de refinamento estético. A verdade dele não é a sua verdade. Eu sei como é isso. Segue o texto. Um beijão

“Es muy fácil advertir que cada vez escribo menos bien, y ésa es precisamente mi manera de buscar un estilo. Algunos críticos han hablado de regresión lamentable, porque naturalmente el proceso tradicional es ir del escribir mal al escribir bien. Pero a mí me parece que entre nosotros el estilo es también un problema ético, una cuestión de decencia. ¡Es tan fácil escribir bien! ¿No deberíamos los argentinos (y esto no vale solamente para la literatura) retroceder primero, bajar primero, tocar lo más amargo, lo más repugnante, lo más obsceno, todo lo que una historia de espaldas al país nos escamoteó tanto tiempo a cambio de la ilusión de nuestra grandeza y nuestra cultura, y así, después de haber tocado fondo, ganarnos el derecho a remontar hacia nosotros mismos, a ser de verdad lo que tenemos que ser?” (Cortázar)

16 August 2007

A vingança do museu

(Publicado no Direto da Redação: www.diretodaredacao.com)

Quarenta anos depois de Hélio Oiticica ter levado a mostra Nova Objetividade Brasileira ao Museu de Arte Moderna do Rio, voltei à cena do crime para ver exposição recém-chegada do circuito Chicago-Londres-Berlim-Nova York. Quando a Tropicália surgiu, eu era menos que um espermatozóide, menos que uma idéia maliciosa na cabeça dos meus pais. Ao longo da adolescência, fui montando um mosaico dos meus preferidos nas artes, sem saber que Ferreira Gullar, Zé Celso, Glauber Rocha e Caetano Veloso tinham qualquer relação entre si. Vieram as muitas explicações para o movimento. Engajamento, não engajamento, exotismo, liberação, brasilidade, estrangeirismo. A funcionária do MAM que nos recebeu, porém, parecia certa do que se tratava a Tropicália: "Sejam bem-vindos. Aqui é proibido proibir!"

Apesar de certa desconfiança sobre aquelas palavras mágicas, meu amigo e eu estávamos decididos a viver uma tarde catártica no MAM. Lá estava a primeira instalação a ser sentida. Um minuto após ter dito "É proibido proibir", a mesma mulher, vestida de preto da cabeça aos pés, volta a se manifestar "É proibido pisar de tênis nas pedrinhas". Ok, eu tiro o tênis. Seguimos caminho dentro da instalação, andando por palha e espuma. Sentamos num chão de terra para conversar. "Nossa, que bonito, nunca vi o museu sentada em chão de terra. Tão diferente". Quisemos tirar uma foto deste ângulo de visão. A funcionária volta: "É proibido tirar fotos". Protestamos: "Mas não é proibido proibir?" Ela responde que quem nos oprime é o museu, não a exposição.

Nesta altura, sentimos a necessidade de nos rebelar, de tocar fogo no museu, de pirar esses visitantes burocráticos, de fazer com que todos os funcionários vestidos de preto corressem atrás de nós. Afinal, estamos aqui para viver a Tropicália e "vocês não estão entendendo naaaaada". Seguimos viagem rumo ao segundo andar. Com fome, tiro da bolsa uma tangerina. Foi questão de segundos até que um robozinho viesse me dizer que era proibido comer. Deixa eu ver se entendi: eles podem expor duas araras numa gaiola e achar que isso é brasilidade; eu não posso comer um fruto da minha própria terra.

Em volta, aquelas obras com dizeres "Lute" e "Pense" só podiam ser provocação. Deixa para lá. Chegamos aos objetos sensoriais da Lygia Clark. Colocamos as luvas e começamos a mexer nas bolas. Criamos uma brincadeira de jogar para o outro bolas de diferentes pesos. Não estávamos atirando nas janelas. Apenas passando com mais rapidez para sentir as diferenças de textura e volume. Surge o carinha de preto: "É proibido jogar com as bolas. Vocês só podem tocá-las". Arghhhhhhhh. O mesmo veio dizer, logo depois, que estávamos andando no sentido errado da exposição. Ignoramos. Apesar das seguidas opressões, continuamos nosso trajeto como Alice no País das Maravilhas. Prestes a entrar em outra instalação, uma visitante repreende nossa distração rispidamente: "Isso aqui é uma fila!", referindo-se a ela mesma e à amiga. Calma, calma, não estamos no banco, você não está no seu horário de almoço tentando pagar a conta de luz.

Saímos da instalação de cara para a Roda dos Prazeres, da outra Lygia, a Pape. Pela primeira vez, demos de ombros, feito crianças tolidas e educadinhas, e não nos atiramos. Já estávamos quase no fim da exposição quando vi uma peça do Pedro Escosteguy: uma caixa com as portas fechadas pelos canos cruzados de duas armas. Claramente, era preciso abrir os dois canos e ver o que havia dentro: uma urna com o aviso "Vote". Ainda estava lendo o "Vote" quando percebi na minha lateral um dedo em riste. Mais uma funcionária de preto me apontando a faixa branca no chão e dizendo que era proibido abrir as portas da caixa. Expliquei que as idéias externas e internas da obra a completavam, uma não existia sem a outra. A mulher repetiu que era proibido e encerrou minha visita com a célebre frase: "O artista não se discute".

Meu amigo suspeitou que fizéssemos parte, sem saber, de alguma excursão turística para a Tropicália, coisa antiga e admirável como catedral adornada em ouro. Voltamos à contemplação divina da Idade Média. Ou fui enganada pelos neoconcretos, ou eles sofreram a mais terrível vingança do museu.

15 August 2007

Tropicália sim

Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?

Vocês tem coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música, que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado.

É a mesma juventude que vai sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem!

Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada!

Hoje não tem Fernando Pessoa!

Eu hoje vim dizer aqui que quem teve coragem de assumir a estrutura do festival, não com o medo que o Sr. Chico de Assis pediu, mas com a coragem, quem teve essa coragem de assumir esta estrutura e fazê-la explodir foi Gilberto Gil e fui eu, não foi ninguém.

Foi Gilberto Gil e fui eu!

Vocês estão por fora! Vocês não dão para entender!

Mas que juventude é essa? (gritos)

Vocês jamais conterão ninguém!

Vocês são iguais sabe a quem?

(Tem som no microfone?)

Vocês são iguais sabe a quem?

Àqueles que foram a Roda Viva e espancaram os atores... Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada! E por falar nisso:

VIVA CACILDA BEKER!
VIVA CACILDA BEKER!


Eu tinha me comprometido em dar esse VIVA aqui, não tem nada a ver com vocês!

O problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música brasileira!

O Maranhão apresentou esse ano uma música, com arranjo de charleston, sabem o que foi?

Foi a "Gabriela" do ano passado que ele não teve coragem de, no ano passado, apresentar, por ser americana.

Mas eu e o Gil já abrimos o caminho, o que é que vocês querem? Eu vim aqui para acabar com isso!

Eu quero dizer ao júri : me desclassifique! Eu não tenho nada a ver com isso! Nada a ver com isso!

Gilberto Gil! Gilberto Gil está comigo para nós acabarmos com o festival e com toda a imbecilidade que reina no Brasil!

Acabar com tudo isso de uma vez!

Nós entramos em festival pra isso! Não é Gil?

Não fingimos, não fingimos, aqui, que desconhecemos o que seja festival não!

Ninguém nunca me ouviu falar assim! Sabe como é?

Nós, eu e ele, tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas, e vocês?

E vocês?

Se vocês... Se vocês em política forem como são em estética, estamos feitos!


Me desclassifiquem junto com o Gil!

Junto com ele, tá entendendo?

E quanto a vocês... (incompreensível).

O júri é muito simpático mas é incompetente.

DEUS ESTÁ SOLTO!

(Caê, no III Festival da Canção)

11 August 2007

Na sombra

Acaso lo que digo no es verdadero; ojalá sea profético.


04 August 2007

Acumulação primitiva de riquezas

O mundo inteiro cabia no meu quarto. Muitas pessoas também. Passávamos dias inteiros ouvindo música alta, escrevendo idéias atiradas na lixeira, tirando coisas do lugar, largando copos semi-cheios pelos cantos, esperando a hora de sair chegar, chegando para não sair mais, não mexa na caixa de pensamentos!, você tem um quarto rosa?, não é rosa, agora é lilás, a cor acalma, a girafa de madeira, os retratos de queridos, a lista de livros furtados e de ladrões, o anúncio do professor de tango Daniel Raphael, o cartão do restaurante peruano, o duende da minha avó, o copinho de tequila, o Marvin e sua hélice amarela, uma meia listrada atrás do monitor, a limpeza nos aproxima da divindade, eu não sou divina, meu quarto não é templo, eu preciso de outros quartos, este entupiu, é a acumulação primitiva de riquezas.

O mundo também coube dentro de uma mochila. Eu despachei cinco quilos de mundo pelo correio, de Manaus para o Rio.

31 July 2007

À baiana

Já que citei o Wagner Moura no último post...

Folha - Na preparação da peça "A Máquina" [2000], você se mudou para o Recife para ensaiar e morou com o elenco e o diretor. Era uma disponibilidade total ao trabalho?

Moura - Total. Que época boa! Todo mundo amigo, todo mundo querendo fazer aquilo. Eu já estava num momento em que queria sair de Salvador, trabalhar com outras pessoas, ver como era o teatro em outros lugares. Outro dia estava me lembrando que, em 1996, eu e Vladimir [Brichta] fizemos uma peça com José Possi Neto, em Salvador. Eu estava quase desistindo de fazer teatro. Achava que ia ser jornalista mesmo, que o teatro não ia dar certo. Ele fez um teste para a peça e eu não quis fazer. Aí os atores da saíram, ele me chamou para ser testado. Fiz uma leitura. Ele gostou da leitura e disse: "Quero que você faça a minha peça". Eu saí correndo da escola de teatro até minha casa, na chuva. Outro dia fiquei com saudade dessa sensação que acho que perdi um pouco. A época d'A Máquina tinha um pouco isso. Tanto que, de vez em quando, vem essa idéia de voltar com "A Máquina". Eu sou sempre o cara que é contra, acho que nós não somos mais aqueles caras que fizeram aquela peça. A gente era aquele cara, queria conhecer o mundo, mostrar o mundo para a menina que amava. A peça hoje não ia ter mais sentido com esse elenco.

30 July 2007

O que você fez?

Vinte e quatro horas atrás, acordei pensando que estava com fome. Dormia no antigo quarto do meu irmão, que tem fama de assombrado, porque Carol estava no meu. Fui até a cozinha, minha mãe fazia frango. Confirmei a suspeita de que estava com fome pela estranha alegria em ver o frango.

Durante o almoço, lembro de ter pensado que ando comendo rápido demais. Costumo esperar imóvel todas as pessoas terminarem de mastigar. Fico inquieta pelo café. 'Posso pedir o café?': nunca pergunto, soaria grosseiro. Então, no domingo, foi assim também. E ao finalmente beber café, pensei como sempre que deveria diminuir as doses... Os dentes ficarão amarelos, o estômago esburacado, o sono agitado, a camisa manchada etc. Logo em seguida, entendi que o café é uma compensação para uma vida sem vícios. Eu poderia estar fumando, estar roendo rodapés, estar ouvindo Beyoncé. Só um golinho de café. Só.

Estranhamente, não tive vontade de ler o jornal. Quando isso acontece, passo a cantarolar internamente 'O sol nas bancas de revista, me enchem de alegria e preguiça, quem lê tanta notícia? Eu vooooou'. Por um segundo, penso em minha vida se não fosse jornalista, se não estivesse fadada a ler notícias para sempre. Eu poderia então ser um pouco Cateano? Falar arrastado? Reparar no sol nas bancas de revista? Sim, eu poderia. No melhor dos sonhos.

Não tinha pressa. Se o mundo estivesse acabando, minha mãe avisaria. Pensei nisso e abri mão de ler a manchete. Nem a manchete, viu? Ela me ligou outro dia quando estava de plantão no hospital. Eram 11 da noite. Parecia uma chamada urgente. Contou, apressada, que um cara de 25 anos tinha morrido engasgado com um naco de carne. 'Mãe, o que você quer que eu faça?' Ela resmungou que era 'apenas um desabafo'.

Logo após o almoço, voltei a dormir. Muito frio. Dois cobertores e dois edredons. Eu tenho três pares de meia que revezo para jogar vôlei. Muito frio nos pés. Pensei que deveria comprar um daqueles pacotões de meia em uma loja popular. Apaguei em segundos.

Quando acordei, me perguntei automaticamente se já era noite. O céu estava nublado e não pude descobrir entre as frestas de persiana do antigo quarto assombrado do meu irmão. Ainda estava nele. Às vezes escolho dormir em outras partes da casa. Dá a sensação de viagem, porque você acorda sem saber direito onde está.

Fui até a cozinha, me preocupei em saber se o café na garrafa térmica era novo ou velho. Minha mãe gritou que era novo, mas ela sempre mente neste assunto. Eu bebi e não me pareceu de todo mal.

Chequei quinhentas vezes minhas diversas contas de e-mail e do orkut. Abri os sites dos jornais, mas fechei sem olhar. O sol quando bate nos sites dos jornais me enche de alegria e preguiça. Eu voooou. No MSN, surgiram uma e outra janelas com assuntos interessantes. Mas é chato escrever em um teclado emperrado e ter tudo mais emperrado na internet. Tipo as relações.

Foi quando minha mãe me chamou na sala para ver uma entrevista do Wagner Moura, constantemente interrompida por aquela bola que usa cinto apertado. O Faustão. Eu e minha mãe desejamos ao mesmo tempo e em voz alta que o Wagner Moura fizesse um monólogo, em close, naquele momento. Depois ela me ofereceu R$ 50 para gravar e editar a entrevista, excluindo todos os trechos em que o Faustão tecia comentários. Eu estava precisando dos R$ 50, mas preferi evitar a fadiga.

Depois de um tempo, resolvi catar tudo que estava fora do lugar no meu quarto. Descobri que a edição de junho da 'Revista de História' do Sergio estava entre meus papéis. Me senti feliz por ter furtado o exemplar sem intenção e, portanto, sem culpa. Agora sim poderei saber tudo sobre o 'desaparecimento do explorador inglês P.H. Fawcett no Xingu'. Sergio me convenceu de que isso era realmente importante e de que Fawcett era o Indiana Jones brasileiro. Ele gosta de traçar paralelos com ícones pops nas suas explicações.

Mas não li a revista. A esta altura, vocês sabem: me enche de alegria e preguiça. Li, despreocupadamente, alguns editais de mestrado e pensei em estudar... Estudar mesmo, estudar muito, estudar a base de café, estudar até saber. Minha mãe me chamou de novo. Ela me chama muito mesmo. 'Vem ver Carandiru'. Lembrei que li recentemente na Folha uma história sobre uma entusiasta do massacre que protestou contra a peça Salmo 91, em São Paulo.

Desde este dia, e especialmente quando reassisti ao filme, pensei em como alguém defenderia o massacre de 111 pessoas em um edifício fechado. Realmente... Sei lá. Ao longo da madrugada, sonhei que estava presa, que havia uma rebelião, que tentava identificar pessoas confiáveis no meio do tumulto. O presídio tinha janelas de vidro. Policiais gritavam comigo.

Na manhã seguinte, antes de sair, coloquei o jornal de domingo (intacto) em uma sacola plástica. 'Síndrome da informação', o Thiago me esclareceu quando cheguei na redação. Ele está juntando jornais há 25 dias. Em um quadro de desenvolvimento da doença, está pior do que eu.

Sergio passou o fim de semana em um festival de blues em Búzios e me perguntou o que eu havia feito no domingo. Respondi que 'nada', mal humorada, após ter enchido seus ouvidos com reclamações. Melhor teria sido dizer 'isso tudo'.

22 July 2007

Preciso de um teclado novo

PRECISO DE UM TECLADO NOVO.

As letras 'A' e 'M' estão há seis meses emperradas.

Me parece muito difícil resolver coisas práticas que tomariam cinco minutos.

Como entrar na loja da esquina, que vejo pelo menos duas vezes ao dia, e comprar um teclado novo.

18 July 2007

Homem com mochila

(YEHUDA AMICHAI)

Homem com mochila no mercado, Irmão,
Como você, sou homem burro, homem camelo,
Homem anjo. Sou como você.
Nossos braços são livres como asas.
Comparados conosco, todos os que carregam cestas
São escravos de escravos, sujeitos e humilhados.

Nós trocamos moedas por verduras frescas,
E para o esquecimento de nossas vidas compramos
Frutas e suas memórias, memória de campo e jardim,
Memória de cheiro da terra e do zumbir de abelhas em dia de calor.

Nós vimos uma mulher num vestido leve de verão
Antes de um amor longo e intenso,
Que determinará a sua vida. Ela não sabe ainda.
Nós sabemos. Em nossas costas
Carregamos o fruto da árvore da sabedoria.

Homem com mochila, você vive onde?
Eu sou como você, vivemos nas distâncias
Entre o prêmio e a punição.
E como nós vivemos? E quando à noite nós dormimos,
Em que sonhamos? Os que você ama,
Ainda vivem nos mesmos lugares?

Nossas mochilas, como pára-quedas fechados
Em nossas costas, abrem de noite
pra podermos saltar, e pairar
Sobre a fragrância de lembrar e de esquecer.

24 June 2007

Atropelamentos

- Ela é um carro desgovernado.

- Um carro desgovernado descendo uma ladeira.

- Sem freios.

- É um carro desgovernado sem freios descendo uma ladeira a 300 quilômetros por hora.

- Com pneus carecas.

- E...

- Chega. Mais um complemento e eu atropelo vocês.

20 June 2007

Para leer

La revista colombiana Semana publicó una selección de las 100 mejores novelas en castellano de los últimos 25 años, basada en una encuesta que hizo entre 81 expertos. Aquí va el resultado. El orden surge de los votos:

El amor en los tiempos del cólera
Gabriel García Márquez

La fiesta del Chivo
Mario Vargas Llosa

Los detectives salvajes
Roberto Bolaño

2666
Roberto Bolaño

Noticias del imperio
Fernando del Paso

Corazón tan blanco
Javier Marías

Bartleby y Compañía
Enrique Vila-Matas

Santa Evita
Tomás Eloy Martínez

Mañana en la batalla piensa en mí
Javier Marías

El desbarrancadero
Fernando Vallejo

La virgen de los sicarios
Fernando Vallejo

El entenado
Juan José Saer

Soldados de Salamina
Javier Cercas

Estrella distante
Roberto Bolaño

Paisaje después de la batalla
Juan Goytisolo

La ciudad de los prodigios
Eduardo Mendoza

El jinete polaco
Antonio Muñoz Molina

El testigo
Juan Villoro

Salón de belleza
Mario Bellatín

Cuando ya no importe
Juan Carlos Onetti

La tejedora de coronas
Germán Espinosa

El paraíso en la otra esquina
Mario Vargas Llosa

Cae la noche tropical
Manuel Puig

Doctor Pasavento
Enrique Vila-Matas

Herrumbrosas lanzas
Juan Benet

Empresas y tribulaciones de Maqroll el Gaviero.
Álvaro Mutis

El invierno en Lisboa.
Antonio Muñoz Molina

Verdes valles, colinas rojas.
Ramiro Pinilla

Mal de amores.
Ángeles Mastretta

Donde las mujeres.
Álvaro Pombo

El pasado.
Alan Pauls

El rastro.
Jorge Gómez Jiménez

Santo oficio de la memoria.
Mempo Giardinelli

Los años con Laura Díaz.
Carlos Fuentes

Plenilunio.
Antonio Muñoz Molina

Todas las almas.
Javier Marías

Cartas cruzadas.
Darío Jaramillo Agudelo

La casa del padre.
Justo Navarro

La visita en el tiempo.
Arturo Uslar Pietri

La historia de Horacio.
Tomás González

La grande.
Juan José Saer

El arte de la fuga.
Sergio Pitol

La velocidad de la luz.
Javier Cercas

Olvidado rey Gudu.
Ana María Matute

La gesta del marrano.
Marco Aguinis

Un viejo que leía novelas de amor.
Luis Sepúlveda

Plata quemada.
Ricardo Piglia

El vuelo de la reina.
Tomás Eloy Martínez

Diablo guardián.
Xavier Velasco

Igur Neblí.
Miquel de Palol

La nieve del almirante.
Álvaro Mutis

Vigilia del almirante.
Augusto Roa Bastos

Un campeón desparejo.
Adolfo Bioy Casares

Los pichiciegos.
Fogwill

La burla del tiempo.
Mauricio Electorat

Una novela china.
César Aira

El inútil de la familia.
Jorge Edwards

Lumperica.
Diamela Eltit

La otra mano de Lepanto.
Carmen Boullosa

En estado de memoria.
Tununa Mercado

Veinte años y un día.
Jorge Semprún

Ladrón de lunas.
Isaac Montero

La cuadratura del círculo.
Álvaro Pombo

No me esperen en abril.
Alfredo Bryce Echenique

Luna Caliente.
Mempo Giardinelli

Una sombra ya pronto serás.
Osvaldo Soriano

El cuarto mundo.
Diamela Eltit

La silla del Águila.
Carlos Fuentes

Temblor.
Rosa Montero

Historia del silencio.
Pedro Zarraluki

Los fantasmas.
César Aira

Angosta.
Héctor Abad Faciolince

La muerte como efecto secundario.
Ana María Shua

La orilla oscura.
José María Merino

La vida exagerada de Martín Romaña.
Alfredo Bryce Echenique

Sin remedio.
Antonio Caballero

El tiempo de las mujeres.
Ignacio Martínez de Pisón

Al morir Don Quijote.
Andrés Trapiello

Glosa.
Juan José Saer

Crónica de un iniciado.
Abelardo Castillo

El traductor.
Salvador Benesdra

Cumpleaños.
César Aira

La sexta lámpara.
Pablo de Santis

El embrujo de Shangai.
Juan Marsé

El maestro de esgrima.
Arturo Pérez Reverte

Carreteras secundarias.
Ignacio Martínez de Pisón

Rosario Tijeras.
Jorge Franco

La sombra del viento.
Carlos Ruiz Safón

Camino a la perdición.
Luis Mateo Díez

A sus plantas rendido un león.
Osvaldo Soriano

Memorias de mis putas tristes.
Gabriel García Márquez

Autómata.
Adolfo García Ortega

Del amor y otros demonios.
Gabriel García Márquez

Ella cantaba boleros.
Guillermo Cabrera Infante

La novela luminosa.
Mario Levrero

La guerra de Galio.
Héctor Aguilar Camín

Arráncame la vida.
Ángeles Mastreta

Arturo, la estrella más brillante.
Reinaldo Arenas

La orilla africana.
Rodrigo Rey Rosa

Los vigilantes.
Diamela Eltit

14 June 2007

O galope do sonho

"Eu gosto de contar histórias, mas, como não me acontecem muitas coisas, eu tenho que mentir. O escritor é um sujeito que não se conforma com o mundo do jeito que é, e por isso inventa outro".

Ariano Suassuna, (quase) 80 anos.

08 June 2007

É pouco para Clarice

A história está no livro de entrevistas feitas pela Clarice Lispector para as revistas 'Fatos e Fotos: Gente' e 'Manchete'. Clarice fazia essas entrevistas para se sustentar. Ou como contou Sérgio Rodrigues, 'defender uns trocados'. Não tenho o livro e fiquei sabendo do caso por uma coluna do jornalista.

Foi assim: Clarice estava no Antonio's entrevistando José Carlos Oliveira, então cronista do JB. No lendário reduto da boemia, o clima era de certa hostilidade. Carlos então disse que 'fazer sucesso é chegar ao mais baixo do fracasso, é sem querer cortar a vida em dois e ver o sangue escorrer'. Era uma mensagem direta a Clarice e suas entrevistas que ficaram famosas nas revistras ultra-comerciais (como se o JB também não fosse).

Carlos: Falamos linguagem diversa, é verdade. Eu prefiro ser feliz a cortar a vida em dois.

Clarice: E eu prefiro tudo, entendeu? Não quero perder nada, não quero sequer a escolha.

Carlos: Você prefere inclusive ser uma grande escritora. Mas eu renunciei há muito tempo essa vaidade. Quero comer, beber, fazer amor e morrer. Não me considero responsável pela literatura.

Clarice: Nem eu, meu caro. E estou vendo a hora em que começaremos, dentro de toda a amizade, a brigar. Também posso lhe dizer que se viver é beber no Antônio's, isso é pouco para mim. Quero mais porque minha sede é maior que a sua.

('Clarice Lispector - Entrevistas', editora Rocco, 232 páginas, só custa R$ 29,00.)

30 May 2007

Dúvida: Brecht é manézão?

QUEM DEVERIA ESTAR TRABALHANDO 1: Brecht não combina com você. Na verdade, gosto do que ele escreveu, embora não acredite em uma palavra. Dizia-se comunista, mas fez de tudo para não viver na Alemanha Ocidental, alegando que queria se manter 'indepentende'. Tentou asilo político na Suíça. Que grande revolucionário pediria pra viver na Suíça?! É conhecido como desertor e contador de vantagens em rodas regadas a uísque em Nova York.

Blergh. Manézão.

Gostava muito de 'Aos que vierem depois de nós'(conhece?). Mas me soa falso hoje em dia.

QUEM DEVERIA ESTAR TRABALHANDO 2: Vamos parar de condenar as pessoas. Marx tinha dinheiro e abusava de sua empregada doméstica. É manézão por isso? Não li, mas o vejo sendo citado de formas bacanas. Ele também gostava do lado bom americano, tipo cinema, gângsters, jazz, boxe, isso na época em que o país era mais charmoso e não infestado de gordos. Li isso no Lobo da Estepe.

29 May 2007

O que sobrou?

A arte é um esquivar-se a agir, ou a viver. A arte é a expressão intelectual da emoção, distinta da vida, que é a expressão volitiva da emoção. O que não temos, ou não ousamos, ou não conseguimos, podemos possuí-lo em sonho, e é com esse sonho que fazemos arte. Outras vezes a emoção é a tal ponto forte que, embora reduzida à acção, a acção, a que se reduziu, não a satisfaz; com a emoção que sobra, que ficou inexpressa na vida, se forma a obra de arte. Assim, há dois tipos de artista: o que exprime o que não tem e o que exprime o que sobrou do que teve.

Livro do Desassossego, Fernando Pessoa, minha leitura intermitente.

13 May 2007

Jogar búzios para a reportagem

No Itaim, idosa colecionava lixo em casa

Espanhola de 80 anos diz ter recolhido todo tipo de entulho durante 18 anos e guardado; ela e o filho foram detidos

Após 16h de trabalhos, prefeitura retirou mais de 20 caminhões de resíduos; por falta de espaço, dona dormia num Fiat 147

PAULO SAMPAIO
DA REPORTAGEM LOCAL - FOLHA

Um gari equipado com máscara antigases sai da casa da espanhola Maria Violeta Rodriguez, 80, dizendo que é impossível ficar muito tempo lá dentro. Violeta ficou 18 anos. Esse é o tempo que ela teria gasto para acumular mais de 20 caminhões de lixo: os garis só conseguiram chegar à sala-de-estar depois de cerca de oito horas de limpeza, segundo a Vigilância Sanitária.

"A princípio, tínhamos uma fresta de apenas 20 cm de largura para entrar na casa", explica Maria Alice Ferreira, chefe da unidade de varrição pública. Segundo a vizinhança, Violeta costumava sair de casa à noite, sempre por volta das 22h, para explorar as latas de lixo do bairro, o Itaim Bibi, na Zona Oeste. Voltava com restos de comida, garrafas vazias, quadros sem molduras, panos velhos e até pólvora; o produto da coleta era entulhado pelos cômodos da casa.

Por falta de espaço, Violeta dormia em um Fiat 147 verde-metálico, ano 1980, de propriedade do filho. Os vizinhos já haviam reclamado do forte odor para a Vigilância Sanitária, mas, dizem, nunca se tomou nenhuma providência. "Cansamos de denunciar, mas ninguém fazia nada. Há uns 15 anos convivemos com esse mau cheiro", afirma a doceira Iolanda Machado Leite, que mora ao lado.

No domingo, depois de cinco dias sem ver Violeta e temendo que ela estivesse morta, uma moradora deu queixa à polícia. "Eu não delatei ninguém", nega a taróloga Celene Wali, propondo jogar búzios para a reportagem. "Foi ela sim!", afirmam alguns vizinhos.

A delegada Maria Aparecida Resende Corsato, do 15º DP, diz que a invasão da casa é legítima, já que o odor no local punha em risco a saúde da comunidade. "O interesse privado não pode estar acima do público", afirma Aparecida, que recomendou aos repórteres jogar os sapatos fora, para evitar contaminação, e declarou que iria às lojas Marisa comprar "um moletom baratinho para vestir".

Quando a polícia entrou no local, Violeta estava na casa do filho, no Guarujá. Ela soube da invasão por uma neta que ouviu a notícia no rádio. Como a senhora se sentiu?
"Não estou entendendo nada, imagina. Isso é crime, vou processar", repete, indignada, Violeta, que foi detida junto com o filho, o mecânico Juan Maurício Salgado, 40, dono das cinco carcaças de motos encontradas no local.

"Eu ia fazer uma arrumação esta semana e jogar fora o que não prestasse", garante Violeta. Muito nervoso, caminhando de um lado para o outro, Salgado se descontrola tentando justificar o entulho. "Mamãe é assim, não tem o que dizer. O que vocês querem que eu faça?" Violeta, que guardava em casa ainda as escrituras de 16 imóveis, afirma que vasculhava o lixo porque às vezes não tinha dinheiro para comer.
"O IPTU está caríssimo", queixa-se ela, que guardava também cerca de 25 mil pesetas, moeda espanhola fora de circulação.

Segundo a delegada, Violeta e o filho já têm passagem pela polícia por pequenos furtos. Eles serão indiciados por crime contra a saúde pública, exposição da vida alheia a perigo iminente e posse de artefato explosivo."Pensando bem, a senhora vai ser presa!", resolve a delegada, depois de folhear o código penal e descobrir que guardar explosivos em casa dá cadeia. Violeta examina Aparecida com expressão de pouco caso e bufa. "Mierda!"

"Mamãe nem sabe o que é isso [pólvora]. Ela catava qualquer coisa", diz Salgado. A delegada acaba voltando atrás. A senhora não tinha medo de dormir com ratos (que, de acordo com a varrição, tinham tamanho de gatos)?

"Não tenho medo de nada". E de ser presa?

"O quê!?"

***

É uma matéria de meados do ano passado. Lembrei por acaso durante este plantão de domingo. E isso me animou! Jogar búzios para a reportagem seria ótemo agora.

Coisas não-jornalísticas

Fim de fase. Números numa agenda de telefone experiente com medo do futuro, caráter dos compadres, mesas de bar distintas, culpados descrevendo guerras, o cativeiro e a janela estilhaçada, mais conhecidos, mais conhecidos, mais conhecidos, sempre soube que nublava quando alguém bom morria lá, maré, ito, negativos que magoam, a preocupação com uma, chaves para aqueles papéis, secretários, loucos, hipócritas, os que não fazem parte disso, cobrança dos inseguros, sono, baleados na bunda, boca pequena, nomes, o pulmão ardendo acima do mar de biles, medo de errar com tantos, falhas e ambições dos ordiários, realização, incompetência, coquetéis, chamadas mesquinhas, exageros, novo covil ou um castelo, quanto mais eu conheço as pessoas, mais eu gosto do meu cachorro.


Do meu companheiro Cigarro, quando eu sou o Café. Plantão de domingo dá um sooooooono... Sorte que Duran escreve coisas não-jornalísticas.

05 May 2007

A Idade da Razão

"Ando. Vou-me embora, passeio, erro, erro à vontade: férias de universitário, por onde ando levo a concha comigo, fico em casa, no meu quarto, entre meus livros, não me aproximo um centímetro sequer de Marrakech ou de Tombuctu. Mesmo se eu tomasse o trem e chegasse de repente em Marrakech ainda estaria no meu quarto, ainda estaria em casa. Se fosse passear nas praças, se abraçasse um árabe para através dele tocar em Marrakech, ele estaria em Marrakech, eu não. Eu estaria sempre sentado no meu quarto, tranqüilo e pensativo como escolhi ser, a três mil quilômetros do marroquino e de seu turbante. Em meu quarto. Para sempre."

(A Idade da Razão, Pg. 227, Jean-Paul Sartre)

P.S. Vanguarda é escrever em 1945 realidades e devaneios que são de 2007.

27 April 2007

O cansaço quando vem

O cansaço de todas as ilusões e de tudo que há nas ilusões - a perda delas, a inutilidade de as ter, o antecansaço de ter que as ter para perdê-las, a mágoa de as ter tido, a vergonha intelectual de as ter tido sabendo que teriam tal fim.
Bernardo Soares/ Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego.

19 April 2007

Rose Marie (2)

Ela toca gaita, os seus cabelos e os ombros do motorista de ônibus:

“Ei, não ouviu o sinal? Puxei a cordinha, era ponto. Não vai parar?”

Desceu do ônibus com uma caixa de papelão cinza debaixo do braço. Dentro dela, a parte afrodisíaca do almoço improvisado: vinte ovos de codorna.

“Meu senhor, como me explica esses ovos de periquito disfarçados de codorna? Eu sei bem o que é um ovo de codorna: tem manchas escuras e é maior. Não comerei embrião de periquito. Está decidido”.

Saiu da quitanda com um carregamento de frutas. Ao chegar em casa, devolveu ao ninho os quatro ovos de seu casal preferido: Jean e Simone.

Ferveu na chaleira os ovos de codorna. Ouviu o apito justamente no momento em que Vicente raspava a sola do sapato no tapetinho da porta.

Abriu a porta com as mãos sujas de manga. Esfregou o melado no rosto do amante, antes de beijá-lo na boca. Ele estava surpreso, e sujo, mas riu e entrou.

“Rose Marie! Volte aqui!”

“Vá sentando-se na mesa. Tenho surpresa”.

Arrumava em câmera lenta uma salada com ovos, folhas e frutas, quando ele marchou até a cozinha.

“O que é isso? Tem sangue!” (mostrando um papel)

“Não é meu. O sangue, digo”.

“Ah, sim, ótimo. E me dou por satisfeito? Você feriu... Matou alguém?”

Ela gargalhou ruidosamente.

“É um bilhete suicida. Roubei de um morto”.

Vicente passou de uma pergunta à outra, e logo à seguinte, numa sucessão irritante. Rose Marie controlou os nervos. Contou-lhe então a história que passaria batida se não fosse aquele pequeno escândalo conjugal.

Estava ela voltando da quitanda a pé. Sentia-se especialmente feliz pelo golpe inocente que aplicara no quitandeiro. Era domingo, as ruas estavam desertas, mas iluminadas pelo sol da manhã. Uma mulher gorda pôs fim ao momento irrompendo na calçada feito louca. Gritava qualquer coisa que não se podia entender e segurava a testa com as duas mãos.

“O que passa, senhora?”

“Um homem roxo! Roxo! No banheiro!”

Rose Marie olhou a placa do Hotel Lips (lábios em inglês), cruzou o saguão escuro e subiu as escadas de madeira. Entrou na porta escancarada e viu o tal homem roxo. Tinha enroscado no pescoço um cinto que o prendia feito cachorro à maçaneta da porta do banheiro. Prendeu o pescoço e derrapou de propósito no piso molhado. Fim.

Ela fez questão de deixar suas digitais por toda parte. Mexeu no roupão marrom desbotado, nos lençóis, na pequena maleta ao lado da cama, nas cortinas. E achou rapidamente o que queria. “Não agüento mais isso”, as quatro únicas palavras do bilhete suicida.

Guardou o papel em sua bolsa de feira e pôs-se a pensar em outra solução. Acabou por escrever “Apenas decidi a minha morte. Decida você também a sua”.

“Senhora, fique calma, ele está bem”, disse à gorda.

“Ai, graças a Deus! Pensei que estava morto!”

“Está. Mas parece ótimo, além de tudo”.

Rose Marie fez gesto para Vicente de que isso era tudo.

“Vicente, meu bem, agora toma esse bilhetinho e lê o que está escrito. Souvenir do dia que não te agüentei mais. Você pergunta muito..."

07 February 2007

História sem continuação (1)

Ela toca gaita, os cabelos e os ombros do motorista de ônibus:

“Ei, não ouviu o sinal? Puxei a cordinha, era ponto. Não vai parar?”

23 January 2007

Volta ao mundo em sete dias

Kafka me espera na mesa de cabeceira. E sabe-se lá porque me meti com este cara tão metódico, tão bem pensado. Logo eu. Logo agora. Gostava tanto da história de acordar uma barata, sem dar muitas explicações ou pedir para que alguém acreditasse. O sujeito virava barata e ponto. Agora, neste outro livro, um outro sujeito é acordado com a notícia de que responde a um processo, mas ninguém também explica o porquê (Até a página 127).

Toca jazz no meu quarto pequeno e lilás. Um CD que ganhei ontem, quando minha volta ao mundo (meu) completou sete dias. A música do imprevisível, das partes que se encontram quase por acaso. Larguei Kafka de lado, e os jornais de ontem.

Terça-feira passada, estava descalça no show do Nelson Sargento. Me disseram que, no tempo do Cartola, ele era o segundo homem da Mangueira. Hoje mora em Copacabana. Gosto de Cartola, da Mangueira e de Copacabana. Acho que gosto de Nelson também, minha primeira parada na volta ao mundo. No dia seguinte, bebi cerveja de garrafa, debaixo de chuva, num bar perto do Rival BR. Na quinta, escrevi minha segunda coluna para o DR. Na sexta, resolvi burocracias e fui à Feira dos Nordestinos. Cachaça com cravo e canela. Cheiro de cravo e canela, cenário de Céu de Suely, ainda danço forró terrivelmente mal.

Sábado: sete horas na Praia de Ipanema, seis mergulhos, um milho cozido, vinte e sete páginas de jornal cheias de areia. Sábado ainda: sorriso do Chico Buarque de Holanda no palco do Canecão, “mil perdões”. Lembrei da Carla (as duas). “No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido”. Aniversário do Mitchellângelo num porão-estúdio, com rocks legais que nunca vou saber a letra. Mas balanço a cabeça e Sergio me ensina a dar uns pulinhos hypes. Como e durmo e acordo e durmo no domingo. Porque na segunda, “enquanto corria a barca”, eu chego a um lugar que nunca quis deixar. E vejo o Rio, de Niterói; me vejo, então, Nele.

Acordei na terça-feira, não era barata nem estava sendo processada por crime grave que desconhecia. Tampouco partia mais para Nova York. Que Woody Allen então me aguarde. Ou venha até aqui.

15 January 2007

Vai um pedaço de Pessoa aí?

215. Livro do Desassossego, Fernando Pessoa:

"Tenho as opiniões mais desencontradas, as crenças mais diversas. É que nunca penso, nem falo, nem ajo... Pensa, fala, age por mim sempre um sonho qualquer meu, em que me encarno de momento. Vou a falar e falo eu-outro. De meu, só sinto uma incapacidade enorme, um vácuo imenso, uma incompetência ante tudo quanto é vida. Não sei os gestos a acto nenhum real. Nunca aprendi a existir. Tudo que quero, consigo; logo que seja dentro de mim. O que antes era moral, é estético hoje para nós... O que era social, é hoje individual. Para quê olhar os crepúsculos se tenho em mim milhares de crepúsculos diversos - alguns do quais que não o são - e se, além de os olhar dentro de mim, eu própio os sou, por dentro?"