MANHÃ, 6:20h
Já não há amor, nem dor, nem nada. O sinal de trânsito pisca o verde e indica apenas que a vida segue. Algumas pessoas, curiosas, formam grupos em lados opostos da rua. As calçadas separam corpos que, paralelos no infinito, contrariam as certezas matemáticas e jamais se encontrarão em um ponto invisível aos olhos presentes. À direita, um pai de família exala o cheiro da cachaça barata e da morte ordinária. Entre o boteco e a loja de fast-food, um funcionário com uniforme e olheiras varre a calçada, sem varrê-lo dali. Escorrega a vassoura por entre um e outro que cercam o homem estirado no chão. Não notou se era só mais um dos tipos rotos, que soluçam e tropeçam, num transe maldito, até caírem desmaiados. O rosto pressionado contra o concreto sujo, deformado pela posição, revelava algo de inexpressivo, como a feição dos velhos que caem no sono depois de três minutos de leitura. Num sono tão banal quanto precioso. À direita, do outro lado da rua, de bruços, a silhueta rechonchuda de uma mulher nos seus 30 anos forma na calçada um desenho igual ao do sujeito morto. Vistos de cima, dançam imóveis uma marcha fúnebre na manhã nascente.
MANHÃ, 6:04h
Quem estava por perto não deu conta das intenções da mendiga, antiga no bairro tanto quanto aquelas esquinas. Gargalhando de forma frouxa e descontrolada, se aproximou, pé ante pé, da gordinha que acabara de atravessar a rua com livros debaixo do braço. Em segundos, as mãozinhas inchadas tentavam tatear no ar o que havia agarrado em seu pescoço. O entregador na bicicleta riu. Todos riram. Mas os livros caíram. E a mendiga continuava gargalhando e puxando a fio de náilon para trás. A vítima engasgou mais rápido do que alguém pudesse avaliar o fim daquele episódio. As pessoas ficaram com os sorrisos suspensos e congelados num momento anterior de graça que ainda não passara. Até o chaveiro do quiosque próximo correr na direção da mulher que tombava na calçada. A mendiga coçava freneticamente a cabeça, como aqueles macaquinhos que catam piolhos na televisão. E corria em círculos ao redor da morta, do chaveiro e, agora, de uns passantes que pararam para ver o que acontecia. Logo, uma senhora com bolsa de feira perguntaria da vela, aquela que ilumina o caminho do defunto. Mas já não se usam mais essas coisas.
MANHÃ, 5:55h
Às cinco para as seis da manhã, na troca de turno dos funcionários do fast-food, o segurança à paisana subiu ao segundo andar. Tinha uma barriga saliente e as chaves, penduradas no cinto, faziam barulho quando ele avançava pelos degraus da escada. Para ela, servia como despertador. Hora de ir. Em segundos, a figura monstruosa, mas gentil, lhe diria as palavras de sempre, mostraria o relógio e convenceria-a de ir para casa. Adiantou-se, recolheu uns papéis, enfiou-os dentro dos livros e foi ao banheiro. O salão estava vazio quando ele entrou. Viu os livros na mesinha de plástico colorido. Por um instinto qualquer, virou os olhos bruscamente para as janelas. Fechadas. Ela surgiu com andar desengonçado e, ainda de longe, foi lhe falando “Já sei, já sei. Estou indo”. Pegou suas coisas, mas esqueceu o guarda-chuva verde musgo. Ele quase foi atrás para devolvê-lo, mas já não chovia e, no mais, ela voltaria na noite seguinte.
NOITE, 00:00h
Chegavam juntos todos os dias, por volta de meia-noite, quando a lanchonete ainda estava cheia. Ela se sentava perto da parede, num lugar central, de onde podia ver todos que entravam e saíam, embora raramente desgrudasse os olhos do que lia ou escrevia. Os freqüentadores também se repetiam, mesmo que não fossem os mesmos. Havia sempre um grupo desocupado jogando cartas de madrugada. Em média, dois ou três casais se amassando no fundo do salão. Por volta das três, as bonequinhas de luxo, inábeis para as imoralidades da noite, subiam as escadas quase rastejando. Vômito para todos os lados. Algumas pessoas até compravam comida e, ao chegarem no segundo piso, ficavam deslocadas com as bandejas na mão, procurando um lugar para sentar, apesar de tanta disponibilidade de cadeiras. Ela se sentia parte da fauna mista dos fast-foods da madrugada, próxima de uma espécie bacana de inspetores de colégios, daqueles que não delatam, que fingem não verem nada. Volta e meia, alguém perguntava que raio de música cafona e sussurrante era aquela dos alto-falantes. Um freqüentador mais assíduo respondia: “É ela ali que pede. Não vê que fica movendo os lábios em silêncio?”
Ninguém sabia o que tanto estudava, o que fazia durante o dia para passar a noite toda acordada. Às cinco para meia-noite, saía do prédio onde morava, atravessava a rua e ia à lanchonete. Nem sempre cruzava com o pai. Mas, naquela noite, chegaram a se ver por um instante. “Já vai?”. E ela já havia ido. Quando ouviu o barulho da porta batendo, o velho de bigode sentiu, de uma vez só, todo o cansaço guardado.
NOITE, 23:40h
Minutos antes, travava uma discussão no saguão do prédio com um sujeito que deveria ter a idade de sua filha. Sentia-se cansado. Um cara cheio de bons modos tinha aparecido na portaria perguntando, em tom de voz sereno, sobre o número de um apartamento. Ele abaixou o volume do radinho de pilhas e fez esforço para escutá-lo. “O senhor sabe me informar o número do apartamento da Marina, uma moreninha de um metro e meio mais ou menos? O pai dela é juiz, o senhor deve conhecer”. Ele explicou que Marina morava no Bloco A do condomínio, a entrada era pela outra rua. Cinco minutos mais tarde, o rapaz voltou. “O senhor sabe me informar o número do apartamento da Marina, uma moreninha de um metro e meio mais ou menos? O pai dela é juiz, o senhor deve conhecer”. As pernas paradas na mesma posição, o tom de voz inconfundível, o olhar meio distante mais uma vez e aquelas boas maneiras de cinco minutos atrás. “Meu camarada, você deve estar de brincadeira! Eu não te respondi isso agora há pouco?”. O sujeito sacudiu a cabeça, voltando a si, fitou o porteiro e ficou vermelho de tanto constrangimento. Desdobrou-se em desculpas e explicações. O porteiro deu de ombros e ajeitou o volume do radinho. “Olha, meu amigo, deixa para lá, meu tempo aqui está acabando e minha filha me espera”.
NOITE, 23:55h
Pouco antes do habitual, ele deixou a cabine dos porteiros. Ainda no andar térreo, abriu a porta da plaqueta “zelador” e viu a luz do banheiro acesa. Em pé na pequena sala, esperava o momento perfeito de conversar com a filha. Mas ouviu a porta rangendo, virou metade do corpo e um rosto de mulher, do lado de fora do apartamento, sumia em câmera lenta. Largou-se no sofá por frações de segundos, pôs-se novamente de pé e saiu decidido a parar no primeiro boteco. Na esquina, ao lado do seu edifício, bebeu muito e rápido e mais. Até perder os sentidos, a memória, a dor e um pouco do amor. Não percebeu sequer a ventania e o frio. Quando os primeiros raios solares aqueceram a manhã, dois garçons começaram a virar baldes de água no chão do bar. Um ritual de lava-pés dos miseráveis que se repetia em todo amanhecer. Como de costume, ele saiu com pés e tornozelos molhados, talvez limpo de seus pecados, anestesiado de seus pavores. Errou a direção e atravessou a rua. Mais uma vez, por um instante, cruzou com a filha, que não reconheceu. Havia à sua frente apenas uma imagem borrada de pedestres, mas nenhum som vinha deles. Ninguém que lhe mostrasse o caminho de volta ao lar que talvez não fosse seu. Reconhecer. Conhecer de novo. Quem o conhecia para querer vê-lo pela segunda vez? Desabou no chão e morreu, no exato momento em que fenecia também um outro fiapo de vida pouca – a única tristemente ligada à sua.
25 December 2006
17 December 2006
Até amanhã
Tentei assaltos à realidade
Sem esperar o dia seguinte
Para apenas escrever em telas brancas
Os devaneios das noites mais escuras
Distorço o que não me cabe
Nem comove ou transforma
O fantástico mundo dos olhos meus
Tudo para viver nos velhos tempos
Em que não vivi.
Sem esperar o dia seguinte
Para apenas escrever em telas brancas
Os devaneios das noites mais escuras
Distorço o que não me cabe
Nem comove ou transforma
O fantástico mundo dos olhos meus
Tudo para viver nos velhos tempos
Em que não vivi.
02 December 2006
Pílula concepcional
"As coisas. Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase", escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade. Ficam tristes as coisas e a espécie humana, eu acrescento. Com a licença dos ateus eu queria dizer ainda que na ênfase está a alma.
Tive a minha juventude tão impregnada pelo som colonizador que considero um milagre me ver insubmissa nesta altura, tentando desde sempre - ai de mim! - forjar uma vontade com a resistência do ferro.
Lygia Fagundes Telles, "Dia de dizer Não".
Tive a minha juventude tão impregnada pelo som colonizador que considero um milagre me ver insubmissa nesta altura, tentando desde sempre - ai de mim! - forjar uma vontade com a resistência do ferro.
Lygia Fagundes Telles, "Dia de dizer Não".
20 November 2006
Mitchellângelo em ação
"Grilos" (Roberto Carlos - Erasmo Carlos)
Se você passar daquela porta
Você vai ver
Como é que são as coisas
Como é que estão as coisas
Sei que o mundo pesa muitos quilos
Não leve a mal se eu lhe pedir
Para cortar os grilos
Pra cortar os grilos
Pra cortar os grilos
Pra cortar os grilos
Aí, então, você vai se convencer
Que se o mundo pesa
Não vai ser de reza
Que você vai viver
Descanse um pouco
E amanheça aqui comigo
Sou seu amigo, você vai ver
Sou seu amigo, você vai ver
Desenho do Mitchell (link ao lado) e música escolhida por ele também. A única pessoa que conheço capaz de aderir à expressão "grilos".
Se você passar daquela porta
Você vai ver
Como é que são as coisas
Como é que estão as coisas
Sei que o mundo pesa muitos quilos
Não leve a mal se eu lhe pedir
Para cortar os grilos
Pra cortar os grilos
Pra cortar os grilos
Pra cortar os grilos
Aí, então, você vai se convencer
Que se o mundo pesa
Não vai ser de reza
Que você vai viver
Descanse um pouco
E amanheça aqui comigo
Sou seu amigo, você vai ver
Sou seu amigo, você vai ver
Desenho do Mitchell (link ao lado) e música escolhida por ele também. A única pessoa que conheço capaz de aderir à expressão "grilos".
15 November 2006
Miguel não esquece um rosto
Jamais esquecia um rosto. Talvez o único traço que o lembrasse um mafioso, no restaurante de piso e paredes de madeira em que tomava uma sopa fumegante. Um homem com dentes escurecidos rompia o silêncio do ambiente com sapatos que faziam barulho. Miguel fez qualquer expressão de desdém, mantendo o tronco e o rosto tombados na direção da tigela. Pedaços de pão boiavam à sua frente, ele arrastava a colher rente às bordas, deixando que o líquido envolvesse e sugasse para o fundo a parte sólida do seu almoço. Era tímido ou entediado, ainda não havia decidido. Além disso, chovia lá fora, o que sempre respingava em seu humor. O velho insistia em estalar o assoalho com seus sapatos gastos-porém-engraxados. Aliás, a superfície faiscava e refletia as finas listras brancas do paletó negro. A gravata era vermelha e ele usava chapéu, que tirou ao chegar no balcão e pedir uma garrafa de vinho. Barato. Segurou pelo gargalo sua botella de vidro grosso e verde. As mãos frouxas deixavam a sensação de que tudo estava prestes a cair. Sentou e bebeu até que copo e garrafa começassem a ser estalar no encontro furtivo das doses idas e vindas. Estava numa mesa encostada à parede e, chapéu caído na testa, parecia fazer a sesta.
Miguel desistiu do trabalho, às vezes era contra o conceito, e inventou uma consulta dentária emergencial. A sopa tinha acabado e não restava dinheiro para outra coisa. Passou a tarde palitando os dentes e admirando a simetria dos seus dois pés acomodados em dois all-stars espantosamente idênticos. No fundo, sentia-se incomodado pela ausência de uma mulher corpulenta, decote indiscreto, batom vermelho e cabelos negros presos em um rodete quase como o de Evita. Ela deveria estar na mesa encostada na parede, onde agora se acomodava o velho. Seu nome talvez fosse Glória. Mas não estava ali para que pudesse perguntar e nem mesmo para reconhecer o seu rosto. Em outra ocasião, Glória estava sentada com uma postura cheia de orgulho, costas eretas, queixo levantado. Não tocava no copo de vinho. Mantinha os olhos muito negros espremidos e atentos numa direção fixa. A nuca do velho dos sapatos barulhentos. Ele vestia a mesma roupa, naquela vez. E estava de costas para a mulher. O chapéu fazia sombra no seu rosto. Dividida em quatro partes, a face só era iluminada no quadradinho inferior à esquerda pela claridade que vinha da janela.
Miguel não se lembra de nada que pudesse ter alterado esta cena. Os dois ficaram assim por muitos minutos. Quando o rapaz voltou, pouco tempo depois, homem e mulher ainda tinham as mesmas expressões, ocupavam o mesmo lugar no restaurante. O garoto estava inebriado pelo casal, dois amantes gastos como sapatos, cheios de tapas na cara e vociferações silenciosas. Pensou que, em algum momento, ela teria tramado trancá-lo em um quarto escuro para sempre e fazer visitas íntimas de vez em quando. Ele sabia disso e adorava a idéia, enquanto não se concretizasse, claro. Ficava exaustivamente animado com as pretensões ensandecidas da mulher. Queria colocá-la louca e rodopiar com ela num concurso de tango sem regras. Glória teria morrido? De droga, de raiva, de susto?
Miguel estava desapontado. Há cerca de um ano, conhecera os dois num retrato em preto-e-branco de um fotógrafo de rua na Feira de San Telmo. Segurou nas mãos, olhou bem, contou os trocados do bolso, só dariam para uma sopa. Sopa ou fotografia? Fazia frio naquela manhã e já era quase horário do almoço. Deu uma volta na praça e voltou à banca em que o casal permanecia imóvel. Passou os olhos pela última vez e foi atrás da sopa. Cedo ou tarde, reconheceria-os por aí.
Miguel desistiu do trabalho, às vezes era contra o conceito, e inventou uma consulta dentária emergencial. A sopa tinha acabado e não restava dinheiro para outra coisa. Passou a tarde palitando os dentes e admirando a simetria dos seus dois pés acomodados em dois all-stars espantosamente idênticos. No fundo, sentia-se incomodado pela ausência de uma mulher corpulenta, decote indiscreto, batom vermelho e cabelos negros presos em um rodete quase como o de Evita. Ela deveria estar na mesa encostada na parede, onde agora se acomodava o velho. Seu nome talvez fosse Glória. Mas não estava ali para que pudesse perguntar e nem mesmo para reconhecer o seu rosto. Em outra ocasião, Glória estava sentada com uma postura cheia de orgulho, costas eretas, queixo levantado. Não tocava no copo de vinho. Mantinha os olhos muito negros espremidos e atentos numa direção fixa. A nuca do velho dos sapatos barulhentos. Ele vestia a mesma roupa, naquela vez. E estava de costas para a mulher. O chapéu fazia sombra no seu rosto. Dividida em quatro partes, a face só era iluminada no quadradinho inferior à esquerda pela claridade que vinha da janela.
Miguel não se lembra de nada que pudesse ter alterado esta cena. Os dois ficaram assim por muitos minutos. Quando o rapaz voltou, pouco tempo depois, homem e mulher ainda tinham as mesmas expressões, ocupavam o mesmo lugar no restaurante. O garoto estava inebriado pelo casal, dois amantes gastos como sapatos, cheios de tapas na cara e vociferações silenciosas. Pensou que, em algum momento, ela teria tramado trancá-lo em um quarto escuro para sempre e fazer visitas íntimas de vez em quando. Ele sabia disso e adorava a idéia, enquanto não se concretizasse, claro. Ficava exaustivamente animado com as pretensões ensandecidas da mulher. Queria colocá-la louca e rodopiar com ela num concurso de tango sem regras. Glória teria morrido? De droga, de raiva, de susto?
Miguel estava desapontado. Há cerca de um ano, conhecera os dois num retrato em preto-e-branco de um fotógrafo de rua na Feira de San Telmo. Segurou nas mãos, olhou bem, contou os trocados do bolso, só dariam para uma sopa. Sopa ou fotografia? Fazia frio naquela manhã e já era quase horário do almoço. Deu uma volta na praça e voltou à banca em que o casal permanecia imóvel. Passou os olhos pela última vez e foi atrás da sopa. Cedo ou tarde, reconheceria-os por aí.
05 November 2006
Assunto censurado
- Sobre o que é o roteiro?
- Um casal que está numa estrada...
- Um casal?! (Um tom mais alto)
- É... (Pausa) Eles têm um conflito ao longo da viagem. A mulher acha que ele deseja que ela seja outra coisa, começa a agir de forma diferente. No início, ele curte, entra no clima. Mas depois fica encanado, pensando que ela havia sido até ali uma falsa. Os dois...
- Por favor! Não agüento mais histórias sobre relacionamentos.
Entre um chope e outro, garçons para lá e para cá, alguém comenta do trabalho, outro do tempo que virou, um terceiro sobre um disparate do vizinho milico, volta ao primeiro que lembra de uma história curta envolvendo os presentes, eles riem, a graça passa, ninguém está bêbado ainda, parece que não ficarão nesta noite, aí alguém, meio sem jeito, toca num assunto maior que qualquer clichê sobre trabalho, tempo e nostalgia juvenil. Relacionamentos. Minutos iniciais reservados à negação, relacionamentos aniquilam bons momentos da vida, não se pode pensar em paz, beber com os amigos, sair sem avisar, mudar de idéia sem ser questionado “Você não era assim antes...”. Quantos anos perdidos e pessoas e festas e sacadas geniais sobre a vida – tudo isso trocado pela necessidade sub-humana (sim, porque a humanidade pode mais!) de fazer alguém caber no ‘seu’ sonho até descobrir que “calma aí, de quem é esta merda de sonho?”
Mas alguém desliza melancolicamente o dedo indicador na borda do copo, olha para a espuma do chope, faz cara de quem se incomoda com alguma coisa escondida. De repente, todos se incomodam, querem falar, mastigam o passado, esperam que o futuro venha de alguma forma bem previsível para preencher determinadas expectativas. “Alguém para emprestar a escova de dente”, “Mas isso não é anti-higiênico?”, “Fazer e levar crianças para ouvir histórias na pracinha da Flip”, “Quem sabe passar o fim de semana em casa, ouvi dizer que isso é divertido a dois”, “Que pobreza imaginativa...” etc. Fase de maturação.
Há ainda quem cultue a negativa. Em rodas de amigos, são os sujeitos rapidamente catalogados como os adultos que não cresceram – típicos das séries americanas de televisão. Mas nem sempre o fundo disso tudo são risadinhas artificiais de um auditório invisível. Inábeis à intimidade humana ou inadaptados ao cativeiro de emoções fáceis? Alguns, talvez, sejam o que restou da raça de ultra-românticos. Uma horda de radicais do sentimento puro, capazes de negar simulacros made in China por aí. Apaixonar-se deveria ser, para eles, idéia tão obscura como a poeira cósmica que vaga pelo espaço. Se um dia esbarrar com ela, “Óhhhhhhh, poeira cósmica!”, o chão tremerá abaixo dos seus pés – isto é, se houver chão. Mas não se sabe, não se viu e nenhum registro dos sobreviventes é real o suficiente para se fiar. Os xiitas dos relacionamentos odeiam o déjà vu, a mínima possibilidade de reviver o que já foi vivido – por ele próprio ou por seus antecessores. Eles só querem mesmo saber até onde iriam com alguém – não importa se de Palio Weekend tamanho família ou carona na boléia de um caminhão.
- Um casal que está numa estrada...
- Um casal?! (Um tom mais alto)
- É... (Pausa) Eles têm um conflito ao longo da viagem. A mulher acha que ele deseja que ela seja outra coisa, começa a agir de forma diferente. No início, ele curte, entra no clima. Mas depois fica encanado, pensando que ela havia sido até ali uma falsa. Os dois...
- Por favor! Não agüento mais histórias sobre relacionamentos.
Entre um chope e outro, garçons para lá e para cá, alguém comenta do trabalho, outro do tempo que virou, um terceiro sobre um disparate do vizinho milico, volta ao primeiro que lembra de uma história curta envolvendo os presentes, eles riem, a graça passa, ninguém está bêbado ainda, parece que não ficarão nesta noite, aí alguém, meio sem jeito, toca num assunto maior que qualquer clichê sobre trabalho, tempo e nostalgia juvenil. Relacionamentos. Minutos iniciais reservados à negação, relacionamentos aniquilam bons momentos da vida, não se pode pensar em paz, beber com os amigos, sair sem avisar, mudar de idéia sem ser questionado “Você não era assim antes...”. Quantos anos perdidos e pessoas e festas e sacadas geniais sobre a vida – tudo isso trocado pela necessidade sub-humana (sim, porque a humanidade pode mais!) de fazer alguém caber no ‘seu’ sonho até descobrir que “calma aí, de quem é esta merda de sonho?”
Mas alguém desliza melancolicamente o dedo indicador na borda do copo, olha para a espuma do chope, faz cara de quem se incomoda com alguma coisa escondida. De repente, todos se incomodam, querem falar, mastigam o passado, esperam que o futuro venha de alguma forma bem previsível para preencher determinadas expectativas. “Alguém para emprestar a escova de dente”, “Mas isso não é anti-higiênico?”, “Fazer e levar crianças para ouvir histórias na pracinha da Flip”, “Quem sabe passar o fim de semana em casa, ouvi dizer que isso é divertido a dois”, “Que pobreza imaginativa...” etc. Fase de maturação.
Há ainda quem cultue a negativa. Em rodas de amigos, são os sujeitos rapidamente catalogados como os adultos que não cresceram – típicos das séries americanas de televisão. Mas nem sempre o fundo disso tudo são risadinhas artificiais de um auditório invisível. Inábeis à intimidade humana ou inadaptados ao cativeiro de emoções fáceis? Alguns, talvez, sejam o que restou da raça de ultra-românticos. Uma horda de radicais do sentimento puro, capazes de negar simulacros made in China por aí. Apaixonar-se deveria ser, para eles, idéia tão obscura como a poeira cósmica que vaga pelo espaço. Se um dia esbarrar com ela, “Óhhhhhhh, poeira cósmica!”, o chão tremerá abaixo dos seus pés – isto é, se houver chão. Mas não se sabe, não se viu e nenhum registro dos sobreviventes é real o suficiente para se fiar. Os xiitas dos relacionamentos odeiam o déjà vu, a mínima possibilidade de reviver o que já foi vivido – por ele próprio ou por seus antecessores. Eles só querem mesmo saber até onde iriam com alguém – não importa se de Palio Weekend tamanho família ou carona na boléia de um caminhão.
02 November 2006
Mania de edição
Fosse o que fosse
Peste
Estresse
Foice
Estariam juntos
Durante solos de guitarra
Imaginária
Imaginando que (um dia)
Estaria ela odiando
O gerundismo
E a mania de edição
De ele dizer ‘Não!’
Emburrado
Feito burro
Amarrado
Balança a cabeça
Repetindo ‘Não!’
Negativa seca
Mastigada na boca
Misturada às mãos
Que queriam escrever
Mais
Começa de novo
Rasga o papel
Vamos fazer
E acontecer
No barulho
Dos solos de guitarra
Imaginária
P.S. Poema-protesto ao amigo (e editor-júnior) mais implicante impossível.
Peste
Estresse
Foice
Estariam juntos
Durante solos de guitarra
Imaginária
Imaginando que (um dia)
Estaria ela odiando
O gerundismo
E a mania de edição
De ele dizer ‘Não!’
Emburrado
Feito burro
Amarrado
Balança a cabeça
Repetindo ‘Não!’
Negativa seca
Mastigada na boca
Misturada às mãos
Que queriam escrever
Mais
Começa de novo
Rasga o papel
Vamos fazer
E acontecer
No barulho
Dos solos de guitarra
Imaginária
P.S. Poema-protesto ao amigo (e editor-júnior) mais implicante impossível.
01 November 2006
Volver a sentir profundo
Todos os meus pensamentos últimos não preenchem uma tela branca. Recordo as lições da prosa despretensiosa e da poesia neoconcreta que falava do armazém, da tia que tosse, da renda na mesa, das ‘pastilhas de aniversário domingos de futebol corso comícios roleta bilhar baralho’... E nada me vem. A praça deserta, a cerveja entornada, o cachorro de rua, a mais bela sinfonia assobiada por um passageiro de ônibus. Já não sinto, embolada que vivo em outras dimensões do pensamento. Há sensações que não se produzem ou reproduzem. Os moleques mergulhando no chafariz de água imunda da Praça Saens Peña, hoje ao meio-dia, eram uma possível notícia de jornal. E uma beleza a menos, já que a alegria alheia, vista, não era sentida. Com as mãos espalmadas feito remos, espirravam aquele lodo líquido um em cima do outro.
Uma pequena epifania de um dia qualquer, talvez. A possibilidade miúda de um sorriso esboçado gratuitamente. Como na tarde monótona em que ouvi “Volver a los 17”, na voz da peruana Violeta Parra. Tentei passar o milagre adiante como uma promessa de felicidade que se transmite em corrente. Confesso também que a primeira vez que recebi a letra não cheguei a ‘sentir profundo como un niño frente a Diós’. Desta vez, teria sido, quem sabe, a viola ao fundo, o sussurro quase em segredo, a crença compartilhada de que “solo el amor con su ciencia nos vuelve tan inocentes”. Toda a poesia que me faz viva neste instante (e naquele), reafirmada exclusivamente para mim através de um fone de ouvido, num ambiente tão distante da minha alma quanto perto do meu corpo. Era minha confissão mais verdadeira, em público sem ser pública, que me faria em um estalo mágico estar onde gostaria, da velha maneira como me conheço. Sem me mover da cadeira ou desligar o computador em que trabalhava.
‘Volver’, não à toa, me parece mais difícil do que seguir. Pedaços ficam pelo caminho, como aquele sorriso contido para os moleques do chafariz. Ou a confiança de que as pessoas são confiáveis. Algumas vezes me decepcionei com desconhecidos. Um trocador de ônibus se recusou a me dar o troco da nota de R$ 20 que tinha usado para pagar a passagem. A discussão se estendeu, expliquei que só tinha aquele dinheiro, que ele não poderia fingir que não havia recebido. No ponto final em Copacabana, longe do meu destino, sentei na calçada e chorei feito criança. Não podia conceber que alguém faria comigo o que eu não seria capaz contra os outros.
Desde sempre, acreditei que no dia em que não pudesse acreditar nas pessoas - fosse o trocador, o traficante, o frentista, o chefe no trabalho, o amigo mais fofoqueiro -, eu mesma estaria fracassada como projeto de gente. Sigo no mesmo ritual de chorar quando sou sacaneada, por mais irrelevante que seja o veneno destilado, a fofoca contada por descuido, a dívida não paga, o empurrão na confusão da entrada do metrô. Cada insignificância age como uma bomba contra minha fortaleza de ilusões sobre mim mesma – uma coletânea de genes, traços, idéias, vontades do resto da humanidade.
Uma pequena epifania de um dia qualquer, talvez. A possibilidade miúda de um sorriso esboçado gratuitamente. Como na tarde monótona em que ouvi “Volver a los 17”, na voz da peruana Violeta Parra. Tentei passar o milagre adiante como uma promessa de felicidade que se transmite em corrente. Confesso também que a primeira vez que recebi a letra não cheguei a ‘sentir profundo como un niño frente a Diós’. Desta vez, teria sido, quem sabe, a viola ao fundo, o sussurro quase em segredo, a crença compartilhada de que “solo el amor con su ciencia nos vuelve tan inocentes”. Toda a poesia que me faz viva neste instante (e naquele), reafirmada exclusivamente para mim através de um fone de ouvido, num ambiente tão distante da minha alma quanto perto do meu corpo. Era minha confissão mais verdadeira, em público sem ser pública, que me faria em um estalo mágico estar onde gostaria, da velha maneira como me conheço. Sem me mover da cadeira ou desligar o computador em que trabalhava.
‘Volver’, não à toa, me parece mais difícil do que seguir. Pedaços ficam pelo caminho, como aquele sorriso contido para os moleques do chafariz. Ou a confiança de que as pessoas são confiáveis. Algumas vezes me decepcionei com desconhecidos. Um trocador de ônibus se recusou a me dar o troco da nota de R$ 20 que tinha usado para pagar a passagem. A discussão se estendeu, expliquei que só tinha aquele dinheiro, que ele não poderia fingir que não havia recebido. No ponto final em Copacabana, longe do meu destino, sentei na calçada e chorei feito criança. Não podia conceber que alguém faria comigo o que eu não seria capaz contra os outros.
Desde sempre, acreditei que no dia em que não pudesse acreditar nas pessoas - fosse o trocador, o traficante, o frentista, o chefe no trabalho, o amigo mais fofoqueiro -, eu mesma estaria fracassada como projeto de gente. Sigo no mesmo ritual de chorar quando sou sacaneada, por mais irrelevante que seja o veneno destilado, a fofoca contada por descuido, a dívida não paga, o empurrão na confusão da entrada do metrô. Cada insignificância age como uma bomba contra minha fortaleza de ilusões sobre mim mesma – uma coletânea de genes, traços, idéias, vontades do resto da humanidade.
10 October 2006
Momentos de banquete
Sr. Candidato à Presidência e Dona Lu Alckmin inauguram a Daslu*
Trecho escrito num sábado, 6 de agosto de 2005
(Título original: A sociedade em tempos de crise)
A cidade de Ouro Preto, no século 18, estava entre as mais ricas do mundo e, contraditoriamente, sua elite chegou a comer cachorros e ratos para sobreviver durante as crises de abastecimento. Enquanto alguns poucos fantasiavam outra realidade com o falso luxo patrocinado pelo ciclo do ouro - a dos chapéus franceses, tapetes persas e rendas holandesas -, toda a sociedade padecia de uma fome crônica e perfeitamente evitável. Hoje, a perseguição cega pelo controle da inflação e por indicadores econômicos que se encerram neles mesmos é uma face da mesma negligência. O caso Daslu, sua roupagem social. Ambos os exemplos representam os antigos e insistentes erros da elite que se alimenta de momentos de riqueza, sem visão da sociedade em que se insere e sem perspectivas para longo prazo.
###
* Curiosamente, coloquei as palavras "Daslu" e "Alckmin" no Google e apareceram apenas três fotografias: uma da Caros Amigos (esta que publiquei), uma do Vermelho.org e a última da Mídia Independente. Embora o então governador de São Paulo tenha sido figurinha badalada na inauguração do complexo de luxo, mais tarde enquadrado pela PF como sonegador fiscal do país.
03 October 2006
Um textículo de presente
Começo da noite, temperatura baixa, chovia até dentro do metrô. Num ato reflexo (que se repete com certa freqüência), fiz sinal para a composição parar. Pensava o óbvio ululante do potencial cenográfico da comprida Estação da Cinelândia, lugar ótimo para correrias asmáticas, divagações sentimentais, cenas de despedida nas janelas e de encontros com mulheres pedestálticas.
Mentira. Estava com fome e pensava em comer um pastel chinês no Largo do Machado. A história está dentro do vagão. A ficção, assim como a introdução do texto, é mentira, porque a realidade é composta de inconvenientes entediantes. Vagão vazio, com algumas poucas cadeiras disponíveis. Prefiro recostar em pé, ao lado da porta. Por coincidência, em cima de uma pintura no chão, destinando o espaço para deficientes. Não demora o fechar das portas para um senhor me repreender por ocupar o espaço. Respondo que o vagão está vazio. Ele pergunta se eu sou deficiente. "Tenho três testículos" (me imaginei dizendo com um ar blasé). Não disse isso. Só fui sentar longe dali.
No metrô do Rio só te importunam. No de São Paulo, já ouvi histórias de um cara que, na ida para o trabalho, tem o costume de escovar os dentes no vagão. Cospe nos intervalos, quando as portas abrem. Já vi não apenas um cara praticando air guitar, como toda sua banda surda, sem constrangimentos. Um verdadeiro mercado negro funciona em cima dos trilhos. No de lá, fizeram até filme. Nunca vi uma nórdica com casaco de esquimó como aquela sentada em nosso banco bege, na vinheta do Festival do Rio. O metrô daqui é chato pra caralho.
* Como o título já diz, o textículo me foi dado de presente. O autor é Sergio Duran.
Mentira. Estava com fome e pensava em comer um pastel chinês no Largo do Machado. A história está dentro do vagão. A ficção, assim como a introdução do texto, é mentira, porque a realidade é composta de inconvenientes entediantes. Vagão vazio, com algumas poucas cadeiras disponíveis. Prefiro recostar em pé, ao lado da porta. Por coincidência, em cima de uma pintura no chão, destinando o espaço para deficientes. Não demora o fechar das portas para um senhor me repreender por ocupar o espaço. Respondo que o vagão está vazio. Ele pergunta se eu sou deficiente. "Tenho três testículos" (me imaginei dizendo com um ar blasé). Não disse isso. Só fui sentar longe dali.
No metrô do Rio só te importunam. No de São Paulo, já ouvi histórias de um cara que, na ida para o trabalho, tem o costume de escovar os dentes no vagão. Cospe nos intervalos, quando as portas abrem. Já vi não apenas um cara praticando air guitar, como toda sua banda surda, sem constrangimentos. Um verdadeiro mercado negro funciona em cima dos trilhos. No de lá, fizeram até filme. Nunca vi uma nórdica com casaco de esquimó como aquela sentada em nosso banco bege, na vinheta do Festival do Rio. O metrô daqui é chato pra caralho.
* Como o título já diz, o textículo me foi dado de presente. O autor é Sergio Duran.
Animal de confissão
O homem ocidental, escreve Foucault, tornou-se um animal de confissão. A compulsão por mergulhar em si mesmo e falar, especialmente sobre a própria sexualidade, num conjunto de localizações sociais cada vez mais amplo (originalmente a religião, mas, depois, os relacionamentos amorosos, as relações familiares, a medicina, a educação, e assim por diante) aparenta ser uma resistência libertadora para a objetificação do biopoder*. Foucault, no entando, acredita que isso é uma ilusão. A confissão expõe mais a pessoa ao domínio do poder.
(Norman Fairclough)
* O Foucault fala da objetificação do homem em microesferas do poder (como em exames educacionais ou médicos, nas relações de trabalho, etc). Isso se daria pela tentativa de "documentação" do homem como um dado caracterizado por n variáveis. Quando subvertemos as variáveis esperadas, nos confessando pessoas mais complexas e imprevisíveis do que as microesferas podem suportar, achamos, de alguma forma, que estamos subjetivando nossa existência. É neste momento que alguns dizem "Ih, vai dar merda". Será que Foucault tem razão?
(Norman Fairclough)
* O Foucault fala da objetificação do homem em microesferas do poder (como em exames educacionais ou médicos, nas relações de trabalho, etc). Isso se daria pela tentativa de "documentação" do homem como um dado caracterizado por n variáveis. Quando subvertemos as variáveis esperadas, nos confessando pessoas mais complexas e imprevisíveis do que as microesferas podem suportar, achamos, de alguma forma, que estamos subjetivando nossa existência. É neste momento que alguns dizem "Ih, vai dar merda". Será que Foucault tem razão?
30 September 2006
O despertar do nerd interior
O episódio de hoje foi inspirado na série de filmes "Os nerds também amam", que, diga-se de passagem, sempre adorei assistir na sessão da tarde.
A poucos meses da formatura, do momento em que enfim terei alta do hospício, me vejo às voltas novamente com Foucault, Bakthin, Althusser, Pêcheux. Não acho de todo o mal e até sinto aquele prazer solitário típico dos nerds. Mas poderia apresentar qualquer coisa à banca que avaliará minha monografia. Rolos de papel higiênico e reprovações acadêmicas são artigos raros na ECO. Foi quando, então, deu-se o retorno da minha nerdice adormecida nos quatro últimos anos . Talvez seja o terceiro fim de semana seguido que passo em casa, refletindo sobre lingüística crítica, aparelhos ideológicos, formações discursivas e afins. Um complexo de culpa tardio ou simplesmente o sintoma da impotência de não ter mudado nada na estrutura da Escola ou de ter mudado menos do que poderia em mim mesma.
Já tive planos mirabolantes que envolvem golpes de poder na diretoria, expulsão dos professores medíocres, reavaliação dos conteúdos acadêmicos e palavras de ordem revolucionária (sic). Não fiz nada disso e ainda me adaptei à picaretice geral da casa. É bem verdade que a ECO jogou luzes em uns autores aqui, uns cineastas ali e me derrubou certas barreiras do pensamento para que eu pudesse ter outros menos preconceituosos. O jogo de luzes me estimulou a direções tão distintas que, em partes, explica-se a minha atual consistência difusa. Uma característica predominante na maior parte da classe jornalística.
Na sexta-feira retrasada, nas incursões jornalísticas pelos confins cariocas, fui parar em um sebo em Vila Kennedy, Zona Oeste do Rio. Por uma bagatela, saí de lá com "Idade da Razão", do Sartre, e "História da sexualidade", do Foucault. Comecei por Sartre. E, depois de um vôo da galinha, parei. Os primeiros capítulos eram naturalmente instigantes. Mas tanto Sartre, como os ensinamentos maquiavélicos ao jovem príncipe (minhas leituras simultâneas da última semana), ficaram e ficarão forçosamente separados de mim pelo espaço entre a cama e a cômoda.
Lembro do Cazuza, perto da morte, dizendo "As pessoas esquecem o que precisam fazer. Eu não posso me dar a esse luxo. Faço tudo caber nos meus próximos poucos dias. Todas as idéias que eu teria (...). Eu fiquei aqui, tentando agarrar o que eu puder. (...) Sinto que estou reunindo as minhas coisinhas, me concentrando. Se eu pudesse guardava tudo numa garrafa e bebia de uma vez. Penso no que vai ficar de mim. Eu só sei insitir".
Relendo os dois últimos parágrafos, percebo que a crítica insistente de amigos pacientes em relação aos meus textos é estimulada por esta aparente falta de nexo causal. E, também com insistência, rebato que não quero ser didática, "isso empobrece o texto, oras". Tentarei ser, só desta vez. A difusão mental proporcionada por uma formação esquizofrênica, explicitadas nessa vontade sem igual de "querer tudo ao mesmo tempo agora", de Maquiavel a Sartre, de Bergman a Almodóvar, de Chico Buarque a Jonnhy Cash, de Portinari a Roy Lichenstein; e a agenda social permanente, como se uma página de fim de semana, arrancada na marra, decretasse o fim do mundo... Isso tudo, talvez, me faça esquecer do que preciso fazer, como disse Cazuza. Se eu pudesse, realmente colocava tudo numa garrafa e bebia de uma vez só. E, de alguma forma, é necessário decretar, temporariamente, a morte de certas variáveis difusas, para que se possa reunir "as coisinhas" e conferir se, juntas, provam que o todo realmente é maior do que as partes.
A poucos meses da formatura, do momento em que enfim terei alta do hospício, me vejo às voltas novamente com Foucault, Bakthin, Althusser, Pêcheux. Não acho de todo o mal e até sinto aquele prazer solitário típico dos nerds. Mas poderia apresentar qualquer coisa à banca que avaliará minha monografia. Rolos de papel higiênico e reprovações acadêmicas são artigos raros na ECO. Foi quando, então, deu-se o retorno da minha nerdice adormecida nos quatro últimos anos . Talvez seja o terceiro fim de semana seguido que passo em casa, refletindo sobre lingüística crítica, aparelhos ideológicos, formações discursivas e afins. Um complexo de culpa tardio ou simplesmente o sintoma da impotência de não ter mudado nada na estrutura da Escola ou de ter mudado menos do que poderia em mim mesma.
Já tive planos mirabolantes que envolvem golpes de poder na diretoria, expulsão dos professores medíocres, reavaliação dos conteúdos acadêmicos e palavras de ordem revolucionária (sic). Não fiz nada disso e ainda me adaptei à picaretice geral da casa. É bem verdade que a ECO jogou luzes em uns autores aqui, uns cineastas ali e me derrubou certas barreiras do pensamento para que eu pudesse ter outros menos preconceituosos. O jogo de luzes me estimulou a direções tão distintas que, em partes, explica-se a minha atual consistência difusa. Uma característica predominante na maior parte da classe jornalística.
Na sexta-feira retrasada, nas incursões jornalísticas pelos confins cariocas, fui parar em um sebo em Vila Kennedy, Zona Oeste do Rio. Por uma bagatela, saí de lá com "Idade da Razão", do Sartre, e "História da sexualidade", do Foucault. Comecei por Sartre. E, depois de um vôo da galinha, parei. Os primeiros capítulos eram naturalmente instigantes. Mas tanto Sartre, como os ensinamentos maquiavélicos ao jovem príncipe (minhas leituras simultâneas da última semana), ficaram e ficarão forçosamente separados de mim pelo espaço entre a cama e a cômoda.
Lembro do Cazuza, perto da morte, dizendo "As pessoas esquecem o que precisam fazer. Eu não posso me dar a esse luxo. Faço tudo caber nos meus próximos poucos dias. Todas as idéias que eu teria (...). Eu fiquei aqui, tentando agarrar o que eu puder. (...) Sinto que estou reunindo as minhas coisinhas, me concentrando. Se eu pudesse guardava tudo numa garrafa e bebia de uma vez. Penso no que vai ficar de mim. Eu só sei insitir".
Relendo os dois últimos parágrafos, percebo que a crítica insistente de amigos pacientes em relação aos meus textos é estimulada por esta aparente falta de nexo causal. E, também com insistência, rebato que não quero ser didática, "isso empobrece o texto, oras". Tentarei ser, só desta vez. A difusão mental proporcionada por uma formação esquizofrênica, explicitadas nessa vontade sem igual de "querer tudo ao mesmo tempo agora", de Maquiavel a Sartre, de Bergman a Almodóvar, de Chico Buarque a Jonnhy Cash, de Portinari a Roy Lichenstein; e a agenda social permanente, como se uma página de fim de semana, arrancada na marra, decretasse o fim do mundo... Isso tudo, talvez, me faça esquecer do que preciso fazer, como disse Cazuza. Se eu pudesse, realmente colocava tudo numa garrafa e bebia de uma vez só. E, de alguma forma, é necessário decretar, temporariamente, a morte de certas variáveis difusas, para que se possa reunir "as coisinhas" e conferir se, juntas, provam que o todo realmente é maior do que as partes.
11 September 2006
O pombinho de Copacabana
Um pombinho se esconde debaixo do banco.
Foto de Diego González (o mais novo linkado neste blog)
Do mestre
"A gente tem que olhar para o céu e sentir que é pequenino. Quem não sente isso não é modesto para poder fazer nada de importante. E a gente tem que ser realista. Nada é importante. O importante é relativo, são os momentos de prazer, gostar de alguma coisa, ficar abraço com mulheres. A natureza criou a gente para isso. A gente pode acreditar nas pessoas, achar que todo mundo tem um lado bom. O Lenin dizia que ter 10% de qualidade já é o bastante. É preciso ver a vida com mais simplicidade. Estamos aqui de passagem. Cada um escreve sua história e o tempo apaga. Aí acabou."
Do mestre Oscar Niemeyer, que, quase centenário, explica o que é impossível de se aceitar no texto anterior a este.
Do mestre Oscar Niemeyer, que, quase centenário, explica o que é impossível de se aceitar no texto anterior a este.
10 September 2006
Deus e o Diabo aos 25
- Estou em crise. Preciso fazer 'algo'.
- É? Glauber filmou "Deus e o Diabo na Terra do Sol" aos 25 anos.
(Horas mais tarde...)
- Pensei numa coisa muito séria.
(O interlocutor ignora e comenta outro assunto)
- Pensei numa parada importante pra caralho. Tô tentando falar. DE NOVO.
- Vá lá, diga.
- Sua frase "O Glauber fez Deus e o Diabo aos 25" me fez pensar. Porra, algum de nós por acaso TENTOU fazer um filme? Algum de nós tentou fazer alguma coisa? (Animado) Vamos nos movimentar!
- Eu não sei fazer um filme. (Pensativa) Quero escrever um livro, um conto, uma peça. (Ainda pensativa) Aí... Acabei de saber pelo Fantástico que o Isaac Newton descobriu a gravidade aos 24 anos. (Desconfiada) Porra. Tá ficando sério pra gente.
- Isso que eu estou falando. (Sentindo-se compreendido) A gente quer, mas não tenta.
- Daqui a pouco Deus fez o mundo em sete dias, aos 21 anos... E aí fudeu pro meu lado. Aliás, Nelson Rodrigues já escrevia contos pornográficos na quinta-série.
- O que faz dele um pervertido precoce... (Passa por cima do comentário do interlocutor) Isso me aflige demais cara. Você não faz idéia.
- Calma aí. Um segundo.
- ...
- Estou transformando nossa conversa em roteiro.
- Hahahahahahaha.
- É? Glauber filmou "Deus e o Diabo na Terra do Sol" aos 25 anos.
(Horas mais tarde...)
- Pensei numa coisa muito séria.
(O interlocutor ignora e comenta outro assunto)
- Pensei numa parada importante pra caralho. Tô tentando falar. DE NOVO.
- Vá lá, diga.
- Sua frase "O Glauber fez Deus e o Diabo aos 25" me fez pensar. Porra, algum de nós por acaso TENTOU fazer um filme? Algum de nós tentou fazer alguma coisa? (Animado) Vamos nos movimentar!
- Eu não sei fazer um filme. (Pensativa) Quero escrever um livro, um conto, uma peça. (Ainda pensativa) Aí... Acabei de saber pelo Fantástico que o Isaac Newton descobriu a gravidade aos 24 anos. (Desconfiada) Porra. Tá ficando sério pra gente.
- Isso que eu estou falando. (Sentindo-se compreendido) A gente quer, mas não tenta.
- Daqui a pouco Deus fez o mundo em sete dias, aos 21 anos... E aí fudeu pro meu lado. Aliás, Nelson Rodrigues já escrevia contos pornográficos na quinta-série.
- O que faz dele um pervertido precoce... (Passa por cima do comentário do interlocutor) Isso me aflige demais cara. Você não faz idéia.
- Calma aí. Um segundo.
- ...
- Estou transformando nossa conversa em roteiro.
- Hahahahahahaha.
07 September 2006
Rebeldes a favor ou cães de guarda?
"A feliz expressão do Jaguar - rebeldes a favor - dá conta perfeitamente do fenômeno. O estilo de fala, supostamente indignado, um certo tom radical na entonação - como quando se pede o fim da maioridade penal -, tudo para dar a impressão de que quem fala ou escreve está sintonizado com o "basta!", com o sentimento de que tanta coisa precisa mudar e que podemos contar com ele.
São tantos, entre ex-cineastas fracassados, ex-ficcionistas abortados, escritores decadentes, ex-comunistas preocupados a vida inteira em renegar seu passado, filhos de publicitários, ex-trostkistas envergonhados, todos cabendo dentro da definição do Jaguar. Ocupam espaços generosos no principal beneficiário miditático da ditadura militar, para acusar os que querem mínimas formas de contrapartida para as benesses que recebem do Estado, de manter "o velho sonho totalitário de acabar com a Rede Globo" (sic, num arroubo não sei se de prosa, de sexo, de poesia, ou de amor mesmo aos patrões na mão de quem come). Estão abrilhantando com suas bobagens supostamente cultas as páginas da revista porta-voz do bushismo no Brasil.
Nada lhes dá mais satisfação do que concordar com os patrões. Então o que melhor do que atacar a esquerda? Cuba, a Venezuela, o MST, o PT - ou o que consideram que exista de perigoso para a política econômica (que adoram) no PT. Concordando com os patrões, falando em tom indignado, como se o MST tivesse introduzido a violência no campo brasileiro e não fosse uma vítima privilegiada dela. Como se Cuba e Venezuela tivessem inventado o imperialismo e a luta de classes. Como se a esquerda fosse a responsável pelas mazelas do Brasil.
Albert Camus os chamou de "cães de guarda", zelosos protetores dos interesses das elites que lhes pagam os salários e lhes concedem prazerosamente os espaços especiais na mídia. Assim, não precisam eles mesmos, os grandes senhores que se julgam donos do Brasil, vir defender seus interesses. Dispõem de ex-escritores, ex-cineastas, ex-comunistas, para assumir esse papel, concedendo-lhes o efêmero sucesso de uns minutinhos na televisão, uns centímetros dominicais nos seus jornais. Contentam-se com pouco esses servidores dos que produziram e reproduzem o Brasil da ditadura da mídia. São seus quinze minutos de glória e se valem dela para agradecer a seus senhores.
Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. Cada um escolhe suas causas e assume os seus valores. Por isso somos o que somos e nos orgulhamos ou nos envergonhamos de ser o que somos".
Emir Sader
São tantos, entre ex-cineastas fracassados, ex-ficcionistas abortados, escritores decadentes, ex-comunistas preocupados a vida inteira em renegar seu passado, filhos de publicitários, ex-trostkistas envergonhados, todos cabendo dentro da definição do Jaguar. Ocupam espaços generosos no principal beneficiário miditático da ditadura militar, para acusar os que querem mínimas formas de contrapartida para as benesses que recebem do Estado, de manter "o velho sonho totalitário de acabar com a Rede Globo" (sic, num arroubo não sei se de prosa, de sexo, de poesia, ou de amor mesmo aos patrões na mão de quem come). Estão abrilhantando com suas bobagens supostamente cultas as páginas da revista porta-voz do bushismo no Brasil.
Nada lhes dá mais satisfação do que concordar com os patrões. Então o que melhor do que atacar a esquerda? Cuba, a Venezuela, o MST, o PT - ou o que consideram que exista de perigoso para a política econômica (que adoram) no PT. Concordando com os patrões, falando em tom indignado, como se o MST tivesse introduzido a violência no campo brasileiro e não fosse uma vítima privilegiada dela. Como se Cuba e Venezuela tivessem inventado o imperialismo e a luta de classes. Como se a esquerda fosse a responsável pelas mazelas do Brasil.
Albert Camus os chamou de "cães de guarda", zelosos protetores dos interesses das elites que lhes pagam os salários e lhes concedem prazerosamente os espaços especiais na mídia. Assim, não precisam eles mesmos, os grandes senhores que se julgam donos do Brasil, vir defender seus interesses. Dispõem de ex-escritores, ex-cineastas, ex-comunistas, para assumir esse papel, concedendo-lhes o efêmero sucesso de uns minutinhos na televisão, uns centímetros dominicais nos seus jornais. Contentam-se com pouco esses servidores dos que produziram e reproduzem o Brasil da ditadura da mídia. São seus quinze minutos de glória e se valem dela para agradecer a seus senhores.
Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. Cada um escolhe suas causas e assume os seus valores. Por isso somos o que somos e nos orgulhamos ou nos envergonhamos de ser o que somos".
Emir Sader
02 September 2006
Notícias do Nordeste
E as notícias que vêm do Nordeste:
Cícero Adriano diz:
agora quinta-feira a polícia tocou fogo num acampamento nosso até o cachorro morreu queimado.
Carla diz:
e foram pra onde agora?
Cícero Adriano diz:
voltaram para o mesmo local.
Cicero Adriano diz:
é muita coragem q esse povo tem, pode acreditar.
...
Sentei para escrever sobre outra coisa. O MSN abriu sozinho e lá surgiu Cícero Adriano, que conheci na beira de uma estrada qualquer na Venezuela. Eu, sozinha com minhas feições de venezuelana (colombiana, equatoriana ou peruana), de um lado. Do outro, uma pessoa com jaqueta camuflada e bolsa atravessada me dizendo: “Que fome da porra! Quer di-vi-dir al-go pa-ra co-mer?”. Espaçou as sílabas para que meu espanhol entendesse seu português carregado de Vidas Secas. “Só vou beber alguma coisa, estou sem fome”, disse, numa resposta auto-explicativa sobre minha origem. Mas acabei ficando por perto, enquanto ele comia uma hallaca. Sempre confiei em desconhecidos.
Nos dois dias em que dividimos ônibus, comida, bebida, cigarros e histórias descobri que Adriano era agrônomo da Via Campesina em Alagoas. Como eu, voltava do Fórum Social Mundial de Caracas. Foi parar na Venezuela para checar em que pé estava a reforma agrária, prevista na Lei de Terras, de 2001. Falamos muitas horas sobre a terra, sobre a luta no campo. E talvez porque estivéssemos trilhando o caminho de volta, as memórias que retornam ao início foram freqüentes. Então, lembro de Adriano dizendo sobre seu pai lavrador, sobre o político de sua cidade que o mandou estudar em João Pessoa. Da vida de mordomia proporcionada pelo político: apartamento à beira-mar, faculdade federal, dinheiro, carro. “Estava deslumbrado, mas parei e lembrei de onde vim”. Largou tudo que veio fácil, largou o padrinho político. O pai não gostou. E ele arranjou outro modo de sobreviver até acabar a faculdade.
Hoje, Adriano é um híbrido de homem da terra e de doutor da capital. Me contou das ocupações com completa noção do contraste entre o seu papel (da turma do “deixa disso”) e o dos camponeses, que botam abaixo em um movimento só de foice as cercas de arame. Certa vez, ele, temeroso com as conseqüências, tentou impedir: “Fulano, não faça isso, vai ser bala depois”. O homem o agarrou e cuspiu fogo pelos olhos: “Se é para morrer, eu vou morrer. Mas ninguém vai me expulsar mais de lugar nenhum”. Adriano calou a boca, como faz muitas vezes quando tenta organizar cientificamente a plantação dos acampamentos. “Eles sabem mais do que a gente. Fizeram isso a vida toda. Às vezes, resistem a escutar. Tenho que pegar a enxada para dar uma moral, mas não agüento mais que meia hora debaixo do sol. Eles ficam o dia todo”.
Nunca mais nos vimos, mas nos falamos de tempos em tempos. “Quais são as notícias das bandas do Norte?”. E aí ele me responde como vai o movimento, a repressão, as eleições locais. Conto daqui, dos disparates da nossa governadora e da mulher que foi serrada ao meio em Botafogo. “Tem falado com o pessoal do Fórum? Vai rolar barco ou avião fretado para Nairóbi no ano que vem?”. O trabalho nos afasta aos poucos do que era vivo naquelas estradas empoeiradas. No fundo, sabemos que Reveillon igual ao de 68, só uma vez. Viagem igual àquela, só uma também.
Cícero Adriano diz:
agora quinta-feira a polícia tocou fogo num acampamento nosso até o cachorro morreu queimado.
Carla diz:
e foram pra onde agora?
Cícero Adriano diz:
voltaram para o mesmo local.
Cicero Adriano diz:
é muita coragem q esse povo tem, pode acreditar.
...
Sentei para escrever sobre outra coisa. O MSN abriu sozinho e lá surgiu Cícero Adriano, que conheci na beira de uma estrada qualquer na Venezuela. Eu, sozinha com minhas feições de venezuelana (colombiana, equatoriana ou peruana), de um lado. Do outro, uma pessoa com jaqueta camuflada e bolsa atravessada me dizendo: “Que fome da porra! Quer di-vi-dir al-go pa-ra co-mer?”. Espaçou as sílabas para que meu espanhol entendesse seu português carregado de Vidas Secas. “Só vou beber alguma coisa, estou sem fome”, disse, numa resposta auto-explicativa sobre minha origem. Mas acabei ficando por perto, enquanto ele comia uma hallaca. Sempre confiei em desconhecidos.
Nos dois dias em que dividimos ônibus, comida, bebida, cigarros e histórias descobri que Adriano era agrônomo da Via Campesina em Alagoas. Como eu, voltava do Fórum Social Mundial de Caracas. Foi parar na Venezuela para checar em que pé estava a reforma agrária, prevista na Lei de Terras, de 2001. Falamos muitas horas sobre a terra, sobre a luta no campo. E talvez porque estivéssemos trilhando o caminho de volta, as memórias que retornam ao início foram freqüentes. Então, lembro de Adriano dizendo sobre seu pai lavrador, sobre o político de sua cidade que o mandou estudar em João Pessoa. Da vida de mordomia proporcionada pelo político: apartamento à beira-mar, faculdade federal, dinheiro, carro. “Estava deslumbrado, mas parei e lembrei de onde vim”. Largou tudo que veio fácil, largou o padrinho político. O pai não gostou. E ele arranjou outro modo de sobreviver até acabar a faculdade.
Hoje, Adriano é um híbrido de homem da terra e de doutor da capital. Me contou das ocupações com completa noção do contraste entre o seu papel (da turma do “deixa disso”) e o dos camponeses, que botam abaixo em um movimento só de foice as cercas de arame. Certa vez, ele, temeroso com as conseqüências, tentou impedir: “Fulano, não faça isso, vai ser bala depois”. O homem o agarrou e cuspiu fogo pelos olhos: “Se é para morrer, eu vou morrer. Mas ninguém vai me expulsar mais de lugar nenhum”. Adriano calou a boca, como faz muitas vezes quando tenta organizar cientificamente a plantação dos acampamentos. “Eles sabem mais do que a gente. Fizeram isso a vida toda. Às vezes, resistem a escutar. Tenho que pegar a enxada para dar uma moral, mas não agüento mais que meia hora debaixo do sol. Eles ficam o dia todo”.
Nunca mais nos vimos, mas nos falamos de tempos em tempos. “Quais são as notícias das bandas do Norte?”. E aí ele me responde como vai o movimento, a repressão, as eleições locais. Conto daqui, dos disparates da nossa governadora e da mulher que foi serrada ao meio em Botafogo. “Tem falado com o pessoal do Fórum? Vai rolar barco ou avião fretado para Nairóbi no ano que vem?”. O trabalho nos afasta aos poucos do que era vivo naquelas estradas empoeiradas. No fundo, sabemos que Reveillon igual ao de 68, só uma vez. Viagem igual àquela, só uma também.
31 August 2006
Contadores de histórias
Alimento a sensação de que serei, muito em breve, amiga de bons escritores. E não porque, subitamente, ficarei íntima de Saramago e García Márquez, e muito menos dos finados. Mas confio no talento dos amigos, por mais "matemáticos ou físicos" que sejam.
Até aqueles que não costumam escrever uma linha, com costume, me oferecem os melhores contos que uma leitora pode desejar. "Da cozinha, apareceu uma cabecinha à espreita na porta, que, timidamente, perguntou: Prosa ou poesia?". Este é o final de uma das histórias que mais gosto de lembrar, embora sobre ela não tenha sido escrito nada, nem filmado nada ainda.
Pés, olhos e a alma (Diogo Buarque Fransozi)
Prólogo:
Os pés são a porta da alma. Na labuta fatigante dos meses de colheita, os pés descalços calejam na terra quente de sol. Os olhos refletem os calos e a insensibilidade dos que arejaram e queimaram nas fazendas. Um menino que cresceu de botinha ortopédica reflete nos olhos a insegurança e a dor de pisar em pedrinhas. Pés descalços no morro, correndo de bala, correndo com raiva, matando por pouco. Pequenos pés femininos. Pés apertados de bailarinas sentem todo esforço no pé. O homem carrega e anda o mundo com os pés.
Capítulo Único:
Quando desci o Pukuruni descalço e retornei a Cuzco de chinelo pelas pedras que margeiam os trilhos do trem por trinta quilômetros, coloquei a culpa no azar e machuquei meus pés. Os mensageiros Incas, com seus chinelos de palha e couro, corriam de Macchu Picchu a Cuzco, uma distância pelo menos quatro vezes maior, em quatro horas, provavelmente sem machucar os pés. Portanto, não tenho pés de guerreiro. Lembro de andar em carpete e em pedra, de usar tênis, poucas vezes sapatos, bastante chinelo, como qualquer cidadão carioca. Um dia antes de ir para Paris, eu olhei meu tênis e vi que estava velho, que tinha um buraco no lugar onde fica o mindinho. Todos os meus amigos aqui tinham comprado algum calçado, porque é barato. No dia de ir para Paris, passei numa loja, vi uma chuteira em promoção e comprei. Dei meu tênis velho para um mendigo na rua e fui pra Paris. Logo de início, indo da garagem do trem para o albergue, percebi a merda que eu tinha feito. O tênis novo estava esmigalhando meu pé. E não era um tênis novo qualquer, era uma chuteira. Arrastava no calcanhar e amassava o mindinho na frente. Andei até o outro dia, até não suportar mais minha unha entrar no outro dedo, alguns bandaids no calcanhar e uma bolinha de sangue pisado no mindinho. Uma bailarina pode dançar horas com aquela sapatilha apertada, gira, da plié, cambalhota e manobras diversas com aquele sapato triturando seu pé. Mas também tampouco tenho pés de bailarino. Na noite do dia seguinte pedi arrego e, agonizando de dor, vi o oásis: uma loja no meio de restaurantes que vendia apenas calçados às oito/nove da noite. Tudo mais fechado. Comprei o mais barato, um sapato de pano confortável que agradava a meus pés. Senti alívio. Dois minutos depois, a chuva. Meus pés se ensoparam e eu senti bastante frio. Alguns momentos preferi andar descalço, quando parava de chover. Mas meu pé não é planta para ninguém regar, nem pinico pra mijar, nao é pano de chão para secar água derramada, nem esponja.
Epílogo:
Os olhos são o espelho da alma. Os meus refletem o esquecimento e descaso, além de um humor bizarro. E olham sorrindo do último andar de uma torre gigante meus próprios pés láááá embaixo, quase inalcançáveis, sendo devorados por cupins.
Até aqueles que não costumam escrever uma linha, com costume, me oferecem os melhores contos que uma leitora pode desejar. "Da cozinha, apareceu uma cabecinha à espreita na porta, que, timidamente, perguntou: Prosa ou poesia?". Este é o final de uma das histórias que mais gosto de lembrar, embora sobre ela não tenha sido escrito nada, nem filmado nada ainda.
Pés, olhos e a alma (Diogo Buarque Fransozi)
Prólogo:
Os pés são a porta da alma. Na labuta fatigante dos meses de colheita, os pés descalços calejam na terra quente de sol. Os olhos refletem os calos e a insensibilidade dos que arejaram e queimaram nas fazendas. Um menino que cresceu de botinha ortopédica reflete nos olhos a insegurança e a dor de pisar em pedrinhas. Pés descalços no morro, correndo de bala, correndo com raiva, matando por pouco. Pequenos pés femininos. Pés apertados de bailarinas sentem todo esforço no pé. O homem carrega e anda o mundo com os pés.
Capítulo Único:
Quando desci o Pukuruni descalço e retornei a Cuzco de chinelo pelas pedras que margeiam os trilhos do trem por trinta quilômetros, coloquei a culpa no azar e machuquei meus pés. Os mensageiros Incas, com seus chinelos de palha e couro, corriam de Macchu Picchu a Cuzco, uma distância pelo menos quatro vezes maior, em quatro horas, provavelmente sem machucar os pés. Portanto, não tenho pés de guerreiro. Lembro de andar em carpete e em pedra, de usar tênis, poucas vezes sapatos, bastante chinelo, como qualquer cidadão carioca. Um dia antes de ir para Paris, eu olhei meu tênis e vi que estava velho, que tinha um buraco no lugar onde fica o mindinho. Todos os meus amigos aqui tinham comprado algum calçado, porque é barato. No dia de ir para Paris, passei numa loja, vi uma chuteira em promoção e comprei. Dei meu tênis velho para um mendigo na rua e fui pra Paris. Logo de início, indo da garagem do trem para o albergue, percebi a merda que eu tinha feito. O tênis novo estava esmigalhando meu pé. E não era um tênis novo qualquer, era uma chuteira. Arrastava no calcanhar e amassava o mindinho na frente. Andei até o outro dia, até não suportar mais minha unha entrar no outro dedo, alguns bandaids no calcanhar e uma bolinha de sangue pisado no mindinho. Uma bailarina pode dançar horas com aquela sapatilha apertada, gira, da plié, cambalhota e manobras diversas com aquele sapato triturando seu pé. Mas também tampouco tenho pés de bailarino. Na noite do dia seguinte pedi arrego e, agonizando de dor, vi o oásis: uma loja no meio de restaurantes que vendia apenas calçados às oito/nove da noite. Tudo mais fechado. Comprei o mais barato, um sapato de pano confortável que agradava a meus pés. Senti alívio. Dois minutos depois, a chuva. Meus pés se ensoparam e eu senti bastante frio. Alguns momentos preferi andar descalço, quando parava de chover. Mas meu pé não é planta para ninguém regar, nem pinico pra mijar, nao é pano de chão para secar água derramada, nem esponja.
Epílogo:
Os olhos são o espelho da alma. Os meus refletem o esquecimento e descaso, além de um humor bizarro. E olham sorrindo do último andar de uma torre gigante meus próprios pés láááá embaixo, quase inalcançáveis, sendo devorados por cupins.
28 August 2006
Colheita em outras hortas
Olhando em volta, percebo que meu quarto piora de aspecto à medida que escrevo. Como também não tenho gosto por monólogos, dou vez a outros (enquanto tento colocar ordem neste caos).
1. Diogo Fransozi: Começamos por ele, porque é meu amigo, me inspirou a criar este blog e foi o único que comentou em todos os textos abaixo. Na verdade, não entendo muito sobre o que ele faz ou pensa na maior parte do tempo. Costumava perguntar: "E aí, Diogo, o que tem feito lá no seu trabalho?". A resposta era sempre metafísica e incluía aceleradores de partículas,
materiais elásticos e quebra espontânea de simetria. Desisti de fazer média. Prefiro quando ele fala sobre filosofia, eis um dos comentários que fez:
"Aristóteles dizia que nossos amigos eram os nossos iguais, onde identificávamos nós mesmos. Nietzsche dizia que o seu melhor amigo é o seu inimigo. Exatamente..."
* Quem quiser ler sobre física, filosofia ou coisas difíceis: Esboços (link ao lado)
...
2. Johnattan Safran Foer: Não posso dizer que o conheço, mas quero registrar que assisti a sua mesa-redonda na Flip e, no dia seguinte, ainda o vi passeando pela pracinha. Não li "Tudo se ilumina", mas vontade não falta desde que assisti a "Uma vida iluminada", filme inspirado no romance. É lindo, lírico, esperto, engraçado. A prosa detalhista não entedia pela prisão ao real, mas cria um ambiente fantástico, quase fabular. Sem contar que Foer é a pessoa mais normal entre os mortais.
"Há essa noção de que a expressão ou o expressionismo é uma coisa ruim, e uma pessoa esperta é alguém que mantém o controle. Ser cool é considerado uma coisa boa. Me lembro quando eu era estudante, Allen Ginsberg veio para uma leitura onde disse que a pior coisa que você pode ser é cool. E muitos disseram que ele era o mais cool, os beatniks foram os primeiros escritores associados ao termo, de alguma maneira. E ele disse que eles nunca quiseram ser isto, mas emocionais, expressionistas, muito mais perto daquela vida escondida, subentendedida, não-revelada. O livro deve ser um machado a quebrar a fina camada de gelo de um lago, que o separa de você mesmo."
3. Joaquim Ferreira dos Santos: Seu melhor texto é "O homem dodói", uma lição de casa para todo macho que se preza. Para a geração que não conheceu Antônio Maria, as crônicas do Joaquim têm algum vigor. E, sem dúvida, uma observação cuidadosa das tendências.
"O novo cafa:
Não promete mais uma rodada de sexo, drogas e rock and roll porque estão todas cansadas dessa dieta. Essas moças já tiveram a coleção completa de orgasmos anunciados pela revista "Nova", já recriaram pelo avesso todas as posições que a Madonna desenhou nos clipes. Esgotaram a cabala, cancelaram a assinatura do Sexy Hot e foram para a Flip aplaudir Adélia Prado". (28/ 06/2006)
1. Diogo Fransozi: Começamos por ele, porque é meu amigo, me inspirou a criar este blog e foi o único que comentou em todos os textos abaixo. Na verdade, não entendo muito sobre o que ele faz ou pensa na maior parte do tempo. Costumava perguntar: "E aí, Diogo, o que tem feito lá no seu trabalho?". A resposta era sempre metafísica e incluía aceleradores de partículas,
materiais elásticos e quebra espontânea de simetria. Desisti de fazer média. Prefiro quando ele fala sobre filosofia, eis um dos comentários que fez:
"Aristóteles dizia que nossos amigos eram os nossos iguais, onde identificávamos nós mesmos. Nietzsche dizia que o seu melhor amigo é o seu inimigo. Exatamente..."
* Quem quiser ler sobre física, filosofia ou coisas difíceis: Esboços (link ao lado)
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2. Johnattan Safran Foer: Não posso dizer que o conheço, mas quero registrar que assisti a sua mesa-redonda na Flip e, no dia seguinte, ainda o vi passeando pela pracinha. Não li "Tudo se ilumina", mas vontade não falta desde que assisti a "Uma vida iluminada", filme inspirado no romance. É lindo, lírico, esperto, engraçado. A prosa detalhista não entedia pela prisão ao real, mas cria um ambiente fantástico, quase fabular. Sem contar que Foer é a pessoa mais normal entre os mortais.
"Há essa noção de que a expressão ou o expressionismo é uma coisa ruim, e uma pessoa esperta é alguém que mantém o controle. Ser cool é considerado uma coisa boa. Me lembro quando eu era estudante, Allen Ginsberg veio para uma leitura onde disse que a pior coisa que você pode ser é cool. E muitos disseram que ele era o mais cool, os beatniks foram os primeiros escritores associados ao termo, de alguma maneira. E ele disse que eles nunca quiseram ser isto, mas emocionais, expressionistas, muito mais perto daquela vida escondida, subentendedida, não-revelada. O livro deve ser um machado a quebrar a fina camada de gelo de um lago, que o separa de você mesmo."
3. Joaquim Ferreira dos Santos: Seu melhor texto é "O homem dodói", uma lição de casa para todo macho que se preza. Para a geração que não conheceu Antônio Maria, as crônicas do Joaquim têm algum vigor. E, sem dúvida, uma observação cuidadosa das tendências.
"O novo cafa:
Não promete mais uma rodada de sexo, drogas e rock and roll porque estão todas cansadas dessa dieta. Essas moças já tiveram a coleção completa de orgasmos anunciados pela revista "Nova", já recriaram pelo avesso todas as posições que a Madonna desenhou nos clipes. Esgotaram a cabala, cancelaram a assinatura do Sexy Hot e foram para a Flip aplaudir Adélia Prado". (28/ 06/2006)
26 August 2006
Manifesto Surrealista
"Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio-pau a bandeira da imaginação"
Manifesto Surrealista, 1924, André Breton. Sugiro ler o texto completo.
Manifesto Surrealista, 1924, André Breton. Sugiro ler o texto completo.
Roteiro de um diálogo premeditado
Dia ou noite. Ambiente aberto ou fechado. Dois conhecidos se encontram.
- Oi, tudo bem? Estava aqui pensando que... Você conhece o grande Fulano de Tal?
- Ãhn? Hum... É, vagamente ouvi falar sobre... (Droga, acordei intencionada a não responder perguntas de vestibular)
- Mas ao menos sabe que nasceu em um vilarejo da Borgonha, onde a família se recusava a produzir queijos e a beber vinho, e por isso ficou marcado desde cedo por um preconceito social que influiu em toda a sua vasta e imprescindível obra?
- Ã-hã, alguém me falou sobre... (Putaqueopariu, o que eu fiz para merecer?)
O sabe-tudo estufa o peito igual galo de briga e não perde espaço na rinha:
- Bem - continua ele - o grande Fulano de Tal foi decisivo na criação de um conceito de ... (cagação de regra sem fim) . E disse a célebre frase: "Dois mais dois são quatro!". Não é incrível? Ou seria incrível o fato de você não saber disso?
- Que ótimo, querido! Sensacional! (Bateria palmas se não fossem os maus hábitos)
***
"Você sabe quem é o grande Fulano de Tal?" é uma versão mais sutil do velho "Você sabe quem eu sou?". Resposta implícita: "Eu sou aquele que conhece o grande Fulano de Tal. Diferente de você, verme".
- Oi, tudo bem? Estava aqui pensando que... Você conhece o grande Fulano de Tal?
- Ãhn? Hum... É, vagamente ouvi falar sobre... (Droga, acordei intencionada a não responder perguntas de vestibular)
- Mas ao menos sabe que nasceu em um vilarejo da Borgonha, onde a família se recusava a produzir queijos e a beber vinho, e por isso ficou marcado desde cedo por um preconceito social que influiu em toda a sua vasta e imprescindível obra?
- Ã-hã, alguém me falou sobre... (Putaqueopariu, o que eu fiz para merecer?)
O sabe-tudo estufa o peito igual galo de briga e não perde espaço na rinha:
- Bem - continua ele - o grande Fulano de Tal foi decisivo na criação de um conceito de ... (cagação de regra sem fim) . E disse a célebre frase: "Dois mais dois são quatro!". Não é incrível? Ou seria incrível o fato de você não saber disso?
- Que ótimo, querido! Sensacional! (Bateria palmas se não fossem os maus hábitos)
***
"Você sabe quem é o grande Fulano de Tal?" é uma versão mais sutil do velho "Você sabe quem eu sou?". Resposta implícita: "Eu sou aquele que conhece o grande Fulano de Tal. Diferente de você, verme".
Teatros (I)
Não havia cortina no teatro improvisado em que atores pouco sérios se ofereciam em atuações circenses. Tampouco as luzes se apagaram no fim. Sozinha em uma cadeira lateral, que escolheu sem pensar ao chegar atrasada, ela se levantou e apenas sorriu. Com lentidão, deu alguns passos, trocou palavras preguiçosas com algumas pessoas e se dispôs a esperar num banco do jardim o início da noite. Enquanto observava, alheia, o vai-e-vem de atores, remexia a pequena bolsa à busca de um cigarro. Mas não fumava. Procurava qualquer coisa que desse sentido àquela cena.
Levantou e saiu à francesa, sem dizer adeus e sem prestar esclarecimentos. Educada demais para isso, adiou pela vida toda o momento em que mandaria às favas a necessidade de ser presente. Arrancou a bateria do celular e deixou que apodrecesse em um canto qualquer. A donzela estava salva. Desceu as cortinas e apagou as luzes.
Meus seis meses de resistência
“Levantem as mãos os que pertencem ao Country Club!”, gritou Frascisco Árias Cárdenas, major destacado a conter os tumultos na capital venezuelana em pleno Caracazo, no tumultuado fevereiro de 1989. Soldados rasos, jovens e despreparados, descarregavam suas armas contra a população indignada, que tomara espontaneamente as ruas de Caracas, sem liderança e sem controle, para protestar contra o acordo recém-firmado pelo então presidente Carlos Andrés Pérez com o Fundo Monetário Internacional. A medida representava uma série de políticas impopulares planejadas para compensar as crises cíclicas do petróleo e tinha como efeito colateral a degradação, ainda mais acentuada, das condições de vida da maior parte da população. Ao ouvirem a frase do major, desconcertados, os militares cessaram fogo, com o embaraçado de quem não sabe quem é ou o que faz. Na ausência de representantes do Country Club, a Venezuela deu início à busca por si mesma.
(Segue)
...
No meu penúltimo dia em Caracas, despejei na cama do hotel barato um acúmulo de papéis amassados com frases soltas, telefones e endereços, perguntas e mais perguntas, falas de desconhecidos, palavras de ordem e de muros. Trechos do que formaria minha obra final sobre a minha breve história dentro de uma História maior. Voltando ao Brasil, o que era quase palpável às mãos e crível ao olhar inequívoco sobre uma realidade consumada perdeu-se. Não para mim, nunca. Mas perdeu-se nos rostos impávidos, na descrença padrão que encontrei. Numa apatia que eu mesma estava há um longo mês sem presenciar. Então fui me recolhendo, resguardando meus pedacinhos de memória dos outros e, em algum momento, até de mim mesma. Precisava preservá-los da facilidade em deixá-los para trás, em me desvencilhar de tantas palpitações.
Nesta madrugada, remexendo textos arquivados, encontrei duas páginas derramadas no calor caraquenho. O primeiro parágrafo está acima. Um ano antes de desembarcar de ônibus na periferia de Caracas, já lia tudo o que se publicava sobre o assunto. Lia, confusa. Depois, lia e suspeitava. Não sei bem em que momento tomei o tema como meu. Mas lembro da cena descrita neste primeiro parágrafo, foi o início de tudo, pensei na hora. Muito antes de Chávez. E há um pensamento do Apolonio de Carvalho que ilustra esta minha convicção:
"A minha namorada [Renée] insiste muito que eu sou um otimista barato, mas acho que é preciso olhar com otimismo - sem receio de parecer demasiado otimista - como os níveis de consciência popular se revelam através de manifestações próprias, através do apoio e do estímulo às reações positivas dentro e fora do Parlamento", afirmou Apolonio, que morreu em setembro do ano passado, aos 93 anos. (Renée foi sua mulher desde a Resistência Francesa, em que lutou, durante a Segunda Guerra Mundial).
O que muitos não entendem, e eu mesma cansei de explicar, é que Hugo Chávez tornou-se um alvo fácil de bater, mas não é ele o olho do furacão. Há uma conjuntura iniciada anos antes de seu surgimento. Talvez uma única pessoa tenha entendido a minha euforia na volta, pois esteve na Nicarágua após a Revolução Sandinista, década de 80. A descrição se assemelha (guardadas as proporções sobre o efeito de uma guerra) ao que vi: "Havia montanhas de lixo pela cidade e uma miséria sem igual. Mas todos estavam mobilizados, em um clima de renascimento e de solidariedade". A "revolução" assumiu uma conotação piegas, brega, chata. Ou então revolve um passado de derramamento de sangue por "causas nobres". Não. Revolução é o estado de espírito da população. E foi o que vi para crer.
(Segue)
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No meu penúltimo dia em Caracas, despejei na cama do hotel barato um acúmulo de papéis amassados com frases soltas, telefones e endereços, perguntas e mais perguntas, falas de desconhecidos, palavras de ordem e de muros. Trechos do que formaria minha obra final sobre a minha breve história dentro de uma História maior. Voltando ao Brasil, o que era quase palpável às mãos e crível ao olhar inequívoco sobre uma realidade consumada perdeu-se. Não para mim, nunca. Mas perdeu-se nos rostos impávidos, na descrença padrão que encontrei. Numa apatia que eu mesma estava há um longo mês sem presenciar. Então fui me recolhendo, resguardando meus pedacinhos de memória dos outros e, em algum momento, até de mim mesma. Precisava preservá-los da facilidade em deixá-los para trás, em me desvencilhar de tantas palpitações.
Nesta madrugada, remexendo textos arquivados, encontrei duas páginas derramadas no calor caraquenho. O primeiro parágrafo está acima. Um ano antes de desembarcar de ônibus na periferia de Caracas, já lia tudo o que se publicava sobre o assunto. Lia, confusa. Depois, lia e suspeitava. Não sei bem em que momento tomei o tema como meu. Mas lembro da cena descrita neste primeiro parágrafo, foi o início de tudo, pensei na hora. Muito antes de Chávez. E há um pensamento do Apolonio de Carvalho que ilustra esta minha convicção:
"A minha namorada [Renée] insiste muito que eu sou um otimista barato, mas acho que é preciso olhar com otimismo - sem receio de parecer demasiado otimista - como os níveis de consciência popular se revelam através de manifestações próprias, através do apoio e do estímulo às reações positivas dentro e fora do Parlamento", afirmou Apolonio, que morreu em setembro do ano passado, aos 93 anos. (Renée foi sua mulher desde a Resistência Francesa, em que lutou, durante a Segunda Guerra Mundial).
O que muitos não entendem, e eu mesma cansei de explicar, é que Hugo Chávez tornou-se um alvo fácil de bater, mas não é ele o olho do furacão. Há uma conjuntura iniciada anos antes de seu surgimento. Talvez uma única pessoa tenha entendido a minha euforia na volta, pois esteve na Nicarágua após a Revolução Sandinista, década de 80. A descrição se assemelha (guardadas as proporções sobre o efeito de uma guerra) ao que vi: "Havia montanhas de lixo pela cidade e uma miséria sem igual. Mas todos estavam mobilizados, em um clima de renascimento e de solidariedade". A "revolução" assumiu uma conotação piegas, brega, chata. Ou então revolve um passado de derramamento de sangue por "causas nobres". Não. Revolução é o estado de espírito da população. E foi o que vi para crer.
Delírios em uma viagem de ônibus
Vivo para evitar o medo que a vida traz. A sensação cretina que nos aflige sempre que tudo pode dar errado. Ou certo. O ar engasgando a garganta e o nó no peito acelerado. A possibilidade de perder o passado para ganhar o futuro. Toda a sorte de sentimentos e recordações que nos invade no momento decisivo.Acelero e ultrapasso o ritmo dos acontecimentos. Antecipo decisões para não retirá-las da jogada. Eu não seria o pulo do penhasco, mas a corrida desatinada que o precede, quando não há mais cores ou sons, só a certeza do que não pode mais ser desfeito. Sou o que não volta atrás nem pára, pois há muito perdi os freios e a ré. Vivo no silêncio dos segundos que separam o que foi e o que será. Sou a efemeridade do nada. Pois então vivo sem economizar pulos ou quedas. Vivo para ser um corpo no ar, impotente em relação a si mesmo. Sou puro movimento interno.
(Rio, 10 de maio de 2006)
(Rio, 10 de maio de 2006)
Somos os mesmos
A surpresa maior que nos espera é descobrir, através da relação com o outro, como também não nos conhecemos. Pessoas banais reafirmam tudo o que já sabemos que somos. Fortalecemos convicções no contato com quem não nos acrescenta. Se cogitarmos a opção de que todo mundo acrescenta alguma coisa para alguém, podemos mudar esta tese para a de que somos a mesma pessoa de sempre quando estamos na companhia de alguém por quem não valha a pena ser diferente. E depois de um tempo, muitos casais se separam ou se entendiam não porque o “outro” continua o mesmo (as mesmas idéias, as mesmas manias, os mesmos sonhos), mas porque nós também não mudamos tanto quanto gostaríamos. De repente, percebemos que os dilemas e os medos são quase os mesmos; que somos capazes das mesmas reações diante de determinados fatos e que, sobretudo, nos adaptamos a uma nova realidade, porém não conseguimos mudar por ela. Somos os mesmos e esta constatação nos mata.
(Rio, 02 de julho de 2005)
(Rio, 02 de julho de 2005)
25 August 2006
Todo menino é um rei (Parte II)
Século passado tudo era mais simples. Uma boa mulher para casar, boa dona-de-casa, fértil para dar filhos, que por sua vez carregarão meu sobrenome. Essa mulher surgiria na festa de minha formatura, casaríamos na igreja dos pais dela e passaríamos a lua-de-mel em Poços de Caldas. Arranjaria um bom emprego para sustentar a nova família. Compraria uma casa num bom bairro de classe-média, um carro espaçoso para acomodar as crianças e as bagagens para quando saíssemos de férias, as inovações modernas de bens de consumo e juntaria ainda um bocadinho para construir aquela pocilga na Região dos Lagos para os feriados e tempos de festa. Sem histórias de amor, princesas francesas, duelos mortais, reviravoltas dramáticas. Essas coisas não existem mesmo.
Uma vez acreditei que sim. Eu tinha quase a idade que eu tenho. Era meu arqui-inimigo, maléfico, pegava a princesa que eu amava com papos sobre Marx (os irmãos, não Karl), Fellini (as coisas chatas, não as sacanagens), galanteios do século 19 e aquela cara de cara de comercial de pasta de dente. Ah, droga, mas não duelamos, conversamos. Foi patético.
A princesa não correu para os meus braços, chorou daquilo tudo. Não a conquistei numa festa de máscaras no castelo, foi em Jacarepaguá. Não fomos para o castelo, o salário não pagava nem uma quitinete. Não vivemos felizes para sempre, a princesa me chutou meses depois. Aí eu entendi.
Entendi que não existem príncipes maníaco-depressivos, um pouquinho individualistas, um tanto arrogantes, crianças que se mostram auto-suficientes, que torram seus salários em cerveja e se divertem com sarcasmo, rock e... cerveja. Ok. A partir de agora deixarei tele-mensagens, irei passear no shopping no Dia dos Namorados e depois vou esperar pacientemente uma hora dentro do carro na fila de um motel barato. Vou também nas festas da família, farei “festinha” no cachorro, ligarei para perguntar como é que foi o dia. Farei cara de puto para os seus amigos, direi te amo 20 vezes todo dia e darei o antebraço como apoio.
Bah. Mas nada como correr atrás do airbus da Gol gritando: “Me perdoa, fiz merda, volta, eu te amo”. Ou fazer uma serenata tocando o solo de Moby-Dick embaixo da janela dela, que ouviria tudo com as mãos entrelaçadas suportando o rosto. Talvez chamá-la para todo dia tomar Guiness? Discutir coisas do tipo: Amor, não concordo com trabalho, mas quem é que vai pagar as contas? Ou outros problemas que podem surgir do tipo “aluguei um filme romântico” e aparecer com a fita do Alladin. Convencer de... por trás. (Por que não?) Não entendo...
Ah. Mas só quero uma mulher fértil. Farei um exército de mim´s, doutrinarei cultura pop, marcharei sobre Londres, cercando a cidade com arame farpado. Não... Lá dentro tem que estar minha princesa. Ela não precisa ser bonita, mas também não precisa ser feia, pode ser normalzinha. Pode ser daquelas que ficam no canto observando tudo com o maior cinismo ou aquelas que todo mundo junta em volta de tão agradável que é. Só precisa ser autêntica. Pode falar coisas do tipo: “dô toda hora bucetada no poste”, mas que também diga coisas inteligentes e bonitinhas. Não importa se bebe ou fuma, desde que se depile. Que não seja tão presente, mas que também não seja ausente. Que tenha defeitos, mas não muitos e que (preferencialmente) eu goste deles.
Pode até rir de mim, me criticar, sacanear o meu nariz, mas tem que saber o limite para não baixar muito a minha auto-estima. Veja coisas que eu vejo, escute coisas que eu ouço, leia o que eu leio. Não precisa gostar. Que ao menos conheça. Que me permita ter e conceder certas liberdades (mas tenha certeza que a gente é pra sempre. Sempre enquanto dure, o que é indeterminável). E que só diga que ama poucas vezes. Mas naquelas que sente que deve e preserva a pureza disso.
*O autor do texto está exposto nestas linhas e não no nome e sobrenome abaixo delas. O título é homenagem minha a ele.
Uma vez acreditei que sim. Eu tinha quase a idade que eu tenho. Era meu arqui-inimigo, maléfico, pegava a princesa que eu amava com papos sobre Marx (os irmãos, não Karl), Fellini (as coisas chatas, não as sacanagens), galanteios do século 19 e aquela cara de cara de comercial de pasta de dente. Ah, droga, mas não duelamos, conversamos. Foi patético.
A princesa não correu para os meus braços, chorou daquilo tudo. Não a conquistei numa festa de máscaras no castelo, foi em Jacarepaguá. Não fomos para o castelo, o salário não pagava nem uma quitinete. Não vivemos felizes para sempre, a princesa me chutou meses depois. Aí eu entendi.
Entendi que não existem príncipes maníaco-depressivos, um pouquinho individualistas, um tanto arrogantes, crianças que se mostram auto-suficientes, que torram seus salários em cerveja e se divertem com sarcasmo, rock e... cerveja. Ok. A partir de agora deixarei tele-mensagens, irei passear no shopping no Dia dos Namorados e depois vou esperar pacientemente uma hora dentro do carro na fila de um motel barato. Vou também nas festas da família, farei “festinha” no cachorro, ligarei para perguntar como é que foi o dia. Farei cara de puto para os seus amigos, direi te amo 20 vezes todo dia e darei o antebraço como apoio.
Bah. Mas nada como correr atrás do airbus da Gol gritando: “Me perdoa, fiz merda, volta, eu te amo”. Ou fazer uma serenata tocando o solo de Moby-Dick embaixo da janela dela, que ouviria tudo com as mãos entrelaçadas suportando o rosto. Talvez chamá-la para todo dia tomar Guiness? Discutir coisas do tipo: Amor, não concordo com trabalho, mas quem é que vai pagar as contas? Ou outros problemas que podem surgir do tipo “aluguei um filme romântico” e aparecer com a fita do Alladin. Convencer de... por trás. (Por que não?) Não entendo...
Ah. Mas só quero uma mulher fértil. Farei um exército de mim´s, doutrinarei cultura pop, marcharei sobre Londres, cercando a cidade com arame farpado. Não... Lá dentro tem que estar minha princesa. Ela não precisa ser bonita, mas também não precisa ser feia, pode ser normalzinha. Pode ser daquelas que ficam no canto observando tudo com o maior cinismo ou aquelas que todo mundo junta em volta de tão agradável que é. Só precisa ser autêntica. Pode falar coisas do tipo: “dô toda hora bucetada no poste”, mas que também diga coisas inteligentes e bonitinhas. Não importa se bebe ou fuma, desde que se depile. Que não seja tão presente, mas que também não seja ausente. Que tenha defeitos, mas não muitos e que (preferencialmente) eu goste deles.
Pode até rir de mim, me criticar, sacanear o meu nariz, mas tem que saber o limite para não baixar muito a minha auto-estima. Veja coisas que eu vejo, escute coisas que eu ouço, leia o que eu leio. Não precisa gostar. Que ao menos conheça. Que me permita ter e conceder certas liberdades (mas tenha certeza que a gente é pra sempre. Sempre enquanto dure, o que é indeterminável). E que só diga que ama poucas vezes. Mas naquelas que sente que deve e preserva a pureza disso.
*O autor do texto está exposto nestas linhas e não no nome e sobrenome abaixo delas. O título é homenagem minha a ele.
Toda menina é princesa (Parte I)
Ele me faz rir na fila do restaurante e não cria caso quando o garçom troca os pedidos. Não acha que os filmes do Bertolucci sejam só sacanagem nem freqüenta lojinhas de museus. Ele jamais usaria um moletom do MoMa, mas sabe de cabeça alguns versos de Poema Sujo. Acorda de bom humor e dorme cansado, pois usou toda a energia enquanto pôde. Lê para entender o mundo, não para demonstrar conhecimento. Não julga as pessoas, por mais estranhas que elas possam ser, e sabe tratá-las de igual para igual, como um velho amigo de desconhecidos. Gosta de ir ao Maracanã torcer pelo time do coração e sente que tudo vai dar certo. Ele sempre acha isso. Está aberto a viver sem fronteiras, desde que possa envelhecer olhando a Lagoa. Entende minhas limitações sobre música e, por isso, me indica bons CDs. Não me pede muitas explicações, porque sabe que quando compro água de coco engarrafada é por uma esperança persistente de que será boa como na praia. E sem ter convivido comigo antes, descobriu sozinho o que me fez assim, do jeito que sou. Pode descrever qualquer amigo meu com detalhes, mesmo sem tê-lo conhecido pessoalmente. De quando em quando, precisa estar onde quase ninguém vai – uma cachoeira, um rio, uma praia, uma pedra -, ainda que para isso tenha que andar em silêncio durante horas. Acha até que andar de ônibus parece um filme em flashes: fragmentos de pessoas e histórias que observamos ao acaso. É um cara que descomplica qualquer coisa: uma viagem depende de uma mochila; um dia de outro; um sonho de início. E é aqui que começamos.
21 August 2006
Lixão virtual
Meus melhores textos talvez estejam hoje no lixão virtual (será que, mesmo na internet, algo simplesmente evapora com um clique?). Mas são mortos autênticos, pois boa parte foi escrita no calor do momento, na sufocante agonia de dividir um problema ou na incontrolável necessidade de ser infame. Olhei meu "sent items" e colhi algumas manifestações. Na maioria, triviais como um e-mail enviado no meio da tarde.
Assunto: O fotógrafo de gravatinha borboleta da Lapa (11/08)
http://oglobo.globo.com/online/blogs/juarez/post.asp?cod_post=10462
Sensacional... Em menos de cinco dias, Deborah e eu encontramos com nosso amigo da gravatinha duas vezes. Na próxima, teremos que dar uma força para o "último fotógrafo de botequim do Rio".
Assunto: Proust (19/08)
Os seres que têm a possibilidade de viver para si mesmos - é verdade que estes seres são os artistas e fazia muito que eu estava convencido de que jamais o seria - têm também o dever de viver para si mesmos, e a amizade é uma dispensa esse dever, uma abdicação pessoal.
Marcel Proust
Assunto: Res: Boletim Informativo nº 2 (14/ 07)
Adorei este e-mail: a história da sua tia que mata patos; do museu do cineasta desconhecido; das aldeias. Você sabe como minha imaginação é, pude imaginar cada uma das cenas (em especial, a da tia de 80 anos que ataca patos no quintal). Acho que, nesta altura, você já conseguiu se afastar da nossa vida louca do Rio de Janeiro e entrou no passo das pessoas de um lugar mais calmo. Para mim, isso está entre o que há de mais importante nas viagens: descobrir que é possível viver (mesmo que temporariamente) uma outra vida, em outro ritmo. E, assim, poder notar o que às vezes é invisível e simplesmente notar. Andar devagar, sem rumo, sem a agonia de ter de se desvencilhar dos "obstáculos" em forma de gente que nos aparecem pela frente. Pessoas não deveriam ser obstáculos, mas estamos tão envolvidos com a nossa guerra pessoal, que é este o papel que delegamos a quem está passando pela rua. Fico feliz pela sua conexão com Portugal, por essa sua paixão em contar este cotidiano. Nunca tinha pensado em ir à terrinha (implicância histórica seguida de preconceito). E sei que, ao fim da sua jornada, vou me sentir mais próxima do que nunca de onde veio nosso passado. E graças a você. Já sinto sua falta, mas jamais será a ponto de te dizer para voltar ou de lamentar a sua ida. Posso morrer de saudade, porém ela não será maior do que minha alegria por te ver realizar este sonho.
Assunto: Para quem gosta de Nabokov (31/07)
Nabokov aprendeu com as borboletas? (Do NoMínimo)
Não é segredo para ninguém que o grande Vladimir Nabokov (veja nota abaixo sobre “Lolita”) foi um estudioso de borboletas tão sério que chegou a batizar uma nova espécie e sugerir que preferia a lepidopterologia à literatura. Mas ninguém tinha levado tão longe a relação entre as duas maiores paixões do escritor russo (o xadrez vinha em terceiro lugar) quanto o biólogo e nabokovólogo Dmitry Sokolenko.
Sokolenko organizou em São Petersburgo, cidade natal do autor de “Ada”, a exposição “O código Nabokov”. Trata-se de uma série de grandes painéis com imagens superampliadas da anatomia das borboletas ao lado de fragmentos da obra do escritor – leia a reportagem do “New York Times”, em inglês, mediante cadastro gratuito.
O efeito talvez não seja dos mais feios, mas as ambições de Sokolenko vão além do decorativo. Ele espera provar que o Nabokov escritor deve muito ao Nabokov cientista: “Acho que sua atenção meticulosa aos detalhes (como escritor) só pode ter vindo de sua profissão, daquilo que ele estava fazendo na entomologia”.
Assunto: Tá na hora de matar a fome, pessoarrr (04/07)
Vámonos?
Assunto: Comuna é destaque entre os brasileiros mais geniais (25/6)
Estou bem curiosa para saber o que você fez com a edição de hoje da Revista!
Assunto: RES: RES: RES: RES: RES: RES: RES: RES: Alguém nervoso, Carla neurótica
Vem de torpe, esquisito, bizarro, nebuloso.
A verdade é que sempre gostei de você da mesma forma, mas meu corpo reagiu de maneira errada. Queria jamais ter confundido as coisas. Hoje seríamos grandes amigos sem tantas confusões passadas entre os dois. Você integraria facilmente o seleto grupo dos meus incondicionais. E não haveria sinapses, mal entendidos, entrelinhas. E talvez você se tornasse menos temperamental assim.
Assunto: RES: Plágio (15/08)
(Em resposta a: “Por mais incrível que pareça, já existe um livro sobre a Dieta de Jesus:
http://www.amazon.com/gp/product/0785273190/ref=pd_rvi_gw_1/002-3121427-0583235?%5Fencoding=UTF8&v=glance&n=283155
In What Would Jesus Eat? The Ultimate Program for Eating Well, Feeling Great, and Living Longer, Don Colbert, M.D. makes a compelling case for Christians to use the blueprint of this appetizing spin on traditional faith-based diet books to develop a healthier lifestyle using foods available today.”)
No domingo pela manhã cogitamos que este livro já existisse. No nosso camping, um cidadão que portava uma cruz gigante tentou fazer contato com a gente. Debatemos se ele seria um seguidor do já lançado best-seller A Dieta de Jesus. Descobrimos no jornal que aquele era um dos muitos artistas do off off off.
P.S. "Living Longer" não seria muito apropriado no caso de Jesus, apesar de sua dieta.
Assunto: Eu poderia estar matando (11/08)
Eu poderia estar matando, eu poderia estar roubando, eu poderia estar acumulando 20 toneladas de lixo na minha casa... Mas só estou pedindo sua barraca de camping emprestada por meio deste humilde e-mail !!!!!
Assunto: Frase do Dia (11/08)
"O que não me contam, eu escuto atrás das portas. O que não sei, adivinho e, com sorte, você adivinha sempre o que, cedo ou tarde, acaba acontecendo”
Dalton Trevisan
Assunto: Café? (26/07)
(Sem texto)
Assunto: O fotógrafo de gravatinha borboleta da Lapa (11/08)
http://oglobo.globo.com/online/blogs/juarez/post.asp?cod_post=10462
Sensacional... Em menos de cinco dias, Deborah e eu encontramos com nosso amigo da gravatinha duas vezes. Na próxima, teremos que dar uma força para o "último fotógrafo de botequim do Rio".
Assunto: Proust (19/08)
Os seres que têm a possibilidade de viver para si mesmos - é verdade que estes seres são os artistas e fazia muito que eu estava convencido de que jamais o seria - têm também o dever de viver para si mesmos, e a amizade é uma dispensa esse dever, uma abdicação pessoal.
Marcel Proust
Assunto: Res: Boletim Informativo nº 2 (14/ 07)
Adorei este e-mail: a história da sua tia que mata patos; do museu do cineasta desconhecido; das aldeias. Você sabe como minha imaginação é, pude imaginar cada uma das cenas (em especial, a da tia de 80 anos que ataca patos no quintal). Acho que, nesta altura, você já conseguiu se afastar da nossa vida louca do Rio de Janeiro e entrou no passo das pessoas de um lugar mais calmo. Para mim, isso está entre o que há de mais importante nas viagens: descobrir que é possível viver (mesmo que temporariamente) uma outra vida, em outro ritmo. E, assim, poder notar o que às vezes é invisível e simplesmente notar. Andar devagar, sem rumo, sem a agonia de ter de se desvencilhar dos "obstáculos" em forma de gente que nos aparecem pela frente. Pessoas não deveriam ser obstáculos, mas estamos tão envolvidos com a nossa guerra pessoal, que é este o papel que delegamos a quem está passando pela rua. Fico feliz pela sua conexão com Portugal, por essa sua paixão em contar este cotidiano. Nunca tinha pensado em ir à terrinha (implicância histórica seguida de preconceito). E sei que, ao fim da sua jornada, vou me sentir mais próxima do que nunca de onde veio nosso passado. E graças a você. Já sinto sua falta, mas jamais será a ponto de te dizer para voltar ou de lamentar a sua ida. Posso morrer de saudade, porém ela não será maior do que minha alegria por te ver realizar este sonho.
Assunto: Para quem gosta de Nabokov (31/07)
Nabokov aprendeu com as borboletas? (Do NoMínimo)
Não é segredo para ninguém que o grande Vladimir Nabokov (veja nota abaixo sobre “Lolita”) foi um estudioso de borboletas tão sério que chegou a batizar uma nova espécie e sugerir que preferia a lepidopterologia à literatura. Mas ninguém tinha levado tão longe a relação entre as duas maiores paixões do escritor russo (o xadrez vinha em terceiro lugar) quanto o biólogo e nabokovólogo Dmitry Sokolenko.
Sokolenko organizou em São Petersburgo, cidade natal do autor de “Ada”, a exposição “O código Nabokov”. Trata-se de uma série de grandes painéis com imagens superampliadas da anatomia das borboletas ao lado de fragmentos da obra do escritor – leia a reportagem do “New York Times”, em inglês, mediante cadastro gratuito.
O efeito talvez não seja dos mais feios, mas as ambições de Sokolenko vão além do decorativo. Ele espera provar que o Nabokov escritor deve muito ao Nabokov cientista: “Acho que sua atenção meticulosa aos detalhes (como escritor) só pode ter vindo de sua profissão, daquilo que ele estava fazendo na entomologia”.
Assunto: Tá na hora de matar a fome, pessoarrr (04/07)
Vámonos?
Assunto: Comuna é destaque entre os brasileiros mais geniais (25/6)
Estou bem curiosa para saber o que você fez com a edição de hoje da Revista!
Assunto: RES: RES: RES: RES: RES: RES: RES: RES: Alguém nervoso, Carla neurótica
Vem de torpe, esquisito, bizarro, nebuloso.
A verdade é que sempre gostei de você da mesma forma, mas meu corpo reagiu de maneira errada. Queria jamais ter confundido as coisas. Hoje seríamos grandes amigos sem tantas confusões passadas entre os dois. Você integraria facilmente o seleto grupo dos meus incondicionais. E não haveria sinapses, mal entendidos, entrelinhas. E talvez você se tornasse menos temperamental assim.
Assunto: RES: Plágio (15/08)
(Em resposta a: “Por mais incrível que pareça, já existe um livro sobre a Dieta de Jesus:
http://www.amazon.com/gp/product/0785273190/ref=pd_rvi_gw_1/002-3121427-0583235?%5Fencoding=UTF8&v=glance&n=283155
In What Would Jesus Eat? The Ultimate Program for Eating Well, Feeling Great, and Living Longer, Don Colbert, M.D. makes a compelling case for Christians to use the blueprint of this appetizing spin on traditional faith-based diet books to develop a healthier lifestyle using foods available today.”)
No domingo pela manhã cogitamos que este livro já existisse. No nosso camping, um cidadão que portava uma cruz gigante tentou fazer contato com a gente. Debatemos se ele seria um seguidor do já lançado best-seller A Dieta de Jesus. Descobrimos no jornal que aquele era um dos muitos artistas do off off off.
P.S. "Living Longer" não seria muito apropriado no caso de Jesus, apesar de sua dieta.
Assunto: Eu poderia estar matando (11/08)
Eu poderia estar matando, eu poderia estar roubando, eu poderia estar acumulando 20 toneladas de lixo na minha casa... Mas só estou pedindo sua barraca de camping emprestada por meio deste humilde e-mail !!!!!
Assunto: Frase do Dia (11/08)
"O que não me contam, eu escuto atrás das portas. O que não sei, adivinho e, com sorte, você adivinha sempre o que, cedo ou tarde, acaba acontecendo”
Dalton Trevisan
Assunto: Café? (26/07)
(Sem texto)
Sobre blogs e nado sincronizado
"Foi a forma que nos enganaram. Queríamos publicar livros , mas disseram que éramos incompetentes e nos deixaram os blogs para não chorarmos"
(Sérgio Duran, que também acha que os espetáculos de dança da Deborah Colker são como nado sincronizado sem água)
(Sérgio Duran, que também acha que os espetáculos de dança da Deborah Colker são como nado sincronizado sem água)
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